Depois dos excessos sensoriais em que foi useiro e vezeiro, Noé apresenta agora uma visão introspetiva da vida, do tempo e daquilo que fazemos com ele, naquele que é também um dos seus melhores filmes. Neste registo sobre os limites do cinema (o sonho dentro do sonho?), encontra-se um elo inesperado que o liga com a obra anterior.

À partida, o novo projecto de Gaspar Noé, apresentado em Cannes numa das derradeiras sessões do festival, na secção Cannes Première, fazia crescer na multidão que aguardava em fila uma nova dose de ansiedade por um cinema altamente calórico, impregnado de sexo explícito (como em Irreversible, Love), música (como em Climax) e drogas (como em Enter the Void ou Climax, pois então!), ainda que sempre e capaz de excitar todos os sentidos. E mantendo a mesma apetência para trabalhar ideias de cinema.

De um ponto de vista meramente formal, faria até sentido equacionar este Vortex como um exercício de cinema realista apostado em inverter para o seu oposto as temáticas obsessivas do cineasta francês nascido na Argentina. É a vida que se capta ao longo das longas sequências que ocupam duas horas e um quarto, quase sempre filmadas em condições rigorosas. Neste caso a do casal formado pelo cineasta italiano Dario Argento, mestre do giallo (Suspiria, Profondo Rosso), mas também autor de Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone, e pela actriz francesa Françoise Lebrun (talvez mais conhecida pelo incontornável A Mãe e a Puta, de Jean Eustache, em 1973). Ele sem desejo de abandonar os seus livros e movido pela necessidade de escrever um filme sobre a memória; ela a lutar com as limitações da alzheimer. É o oposto, portanto, entre a vida e a morte, a criação e a destruição, o novo e o velho. Com as extensões paralelas do filho (Alex Lutz) e do neto.

Talvez por aí a escolha acertada do split screen, encarado como uma regra e não um mero recurso, facilitando o abarcar dessa dualidade, como as duas partes de uma unidade. Agilizando a comunhão de pontos de vista aproximados, quase idênticos, pelas duas câmaras, embora sem perder a sua individualidade. Há mesmo algo que se estranha (ou entranha), quando a câmara acompanha os gestos de duas pessoas, a menos quando estão com o neto e o filho. Mas adquire um relevo suplementar quando os planos se cruzam, produzindo extensões dos membros ou corpos das personagens, como sucede quando o braço de Argento alcança o de Lebrun ganhando uma forma inusitada, quase perto do horror em que o primeiro foi mestre. Sendo que um dos planos mais conseguidos é quando nos dá o casal deitado na cama, como se fosse um plano geral, mas que se rompa quando cada um se levanta e afasta essa unidade, justificando a sua duplicidade.

Será natural referir a proximidade que a visão de Noé terá com a de Michael Haneke, em “Amor(a sua segunda Palma de Ouro, em 2012, depois de O Laço Branco, em 2009) ao captar a centelha do amor e o fim da vida dos corpos de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, também eles com tanto património fílmico em comum. No entanto, o próprio Gaspar rejeitou essa proximidade, favorecendo o desejo de se aproximar de um quotidiano filmado da forma mais claustrofóbica, durante a pandemia. Mesmo que se perceba que não terá estado longe a sua própria experiência de proximidade com a morte, quando sofrer há dois anos uma hemorragia cerebral.

Percebe-se também que cada um dos atores teve espaço para criar a sua personagem dentro de um guião minimalista. Algo que se completa com os créditos iniciais, em que o nome de cada um é acompanhado com a data de nascimento, e os finais ao acompanharem várias imagens de Dario e Françoise, plenos de juventude, em diferentes etapas da sua vida. Talvez seja esse mesmo o vortex deste filme, ao remeter-nos para o momento celebratório da existência de cada um. Mesmo que aceitando a premissa de Argento “life is a dream”.

Pontuação Geral
Paulo Portugal
Jorge Pereira
Daniel Antero
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