Não há nada a fazer. O impacto e o estrondo que este “Titane” provocou na sua aterragem (sim, é o termo para este OVNI) em Cannes abanou o certame e vai ecoar nele durante muito tempo. Anos, talvez. Não, não é exagero, vulgo hipérbole, dizer que quem quer que ganhasse a Palma de Ouro, daqui a uma dezena de anos, “Titane” será dos poucos filmes que sobreviverão ao tempo no guia dos cinéfilos desta 74ª edição do festival.

Julia Ducournau, que já tinha provocado mossa quando lançou o seu “Grave” (“Raw“), regressa com toda a força e pujança com um objeto que agarra no body horror cronenberguiano (“Crash” em todo o lado) e retorce-o de uma forma que tanto nos leva a Takeshi Miike ou Shinya Tsukamoto, como pisca o olho a Carpenter ou até Tarantino, especialmente na sede pop, na estética (brilhante e distinta direção de fotografia de Ruben Impens) e sonoridade (banda sonora épica), na fome e sede da ultra violência e das relações e interações obrigatoriamente disfuncionais. Tudo por aqui vai bem além da mera superficialidade fun do filme que se consome no imediato e se esquece no meio de uma pilha qualquer. Vai-se mais longe, nem que seja uma marretada a despertar-nos.

Carregado estilisticamente como nenhum outro filme em Cannes (talvez apenas o estilo habitual, mas já repetitivo, de Wes Anderson esteja ao seu lado), esta história de uma jovem com uma placa de titânio na cabeça que se faz passar pelo filho desaparecido de um bombeiro para escapar à polícia tinha à partida poucas chances de conquistar a Palma de Ouro, mas ganhou, dando um novo alento ao circuito de festivais com o chamado cinema de género a invadir as secções competitivas.

Na sala de cinema, os apupos surgiram, mas mais os gritos e desviares de olhares envergonhados e assustados, especialmente quando a nossa carismática protagonista começa a escarafunchar o seu próprio corpo grávido de um “pai” muito… mas muito particular.

Na verdade, este é o tipo de filme que quanto menos se falar melhor, mas esperem o grotesco, o bizarro e o macabro, tudo cimentado por um guião que não se cansa em ir contra qualquer convenção, qualquer previsibilidade, e com dois atores (que Vincent Lindon gigante aqui!!) a entregarem-se de corpo e alma a papéis nunca circunscritos ao bom e mau, ao manipulador e manipulado, ao assassino ou vítima.

Nisto, Ducournau criou aqui uma pequena obra-prima, um filme atordoante e profundamente sensorial que esconde essencialmente um drama psicológico movido por traumas físicos. Um objeto que nos agarra, encandeia e cega. 

E quanto mais pensamos nele, mais sentimos as suas falhas e defeitos, a sua forma tão crua (raw) como artificial e plástica que lhe dá uma forma única, uma identidade muito própria bem além do choque pelo choque, e que revela maturidade de quem o criou e atuou (Agatha Rousselle sensacional). Nasceu um filme de culto. O parto foi doloroso, mas simultaneamente esplendoroso e inesquecível. Imperdível.

(Crítica originalmente escrita em julho 2021 e ajustada posteriormente depois do filme conquistar a Palma de Ouro)

Pontuação Geral
Jorge Pereira Rosa
Guilherme F. Alcobia
Rodrigo Fonseca
titane-bomba-atordoante-de-julia-ducournauCarregada estilisticamente, uma pequena obra-prima que o grotesco, o bizarro e o macabro tornam imperdível.