Há um limiar entre a infância e a adolescência em que as raparigas se encontram alvos principais de uma cultura patriarcal, no cruzamento entre o que sentem, o que partilham com outras, e o que lhes vai sendo exigido das várias formas de autoridade presentes nas suas vidas.

Raparigas” de Pilar Palomero mostra isso, centrando-se na história de Celia, com apenas 11 anos que, quando uma nova colega chega à sua escola, começa a aperceber-se das pressões que sofre para se conformar. Filha de mãe solteira, Celia anda num colégio de freiras que, para além das disciplinas comuns, ensina uma sexualidade casta e só permitida dentro do casamento, ao mesmo tempo que a televisão e as revistas lhe vão mostrando sistematicamente a objetificação sexual das mulheres. A quase-ausência da mãe, a tentar garantir-lhe um futuro melhor pela educação e perdida, no cansaço ou na rotina, nos poucos momentos em que estão juntas, não é construída como maliciosa e leva a um clímax inesperado em que se vê a semelhança da situação em que ambas se encontram.

Mas é nas relações com as suas amigas que o filme vive e respira. Quando a maioria do cinema reduz a relação entre mulheres a competição por ou suporte a homens, é maravilhoso poder ver o carinho realista entre mulheres, sem se perder em confusões românticas (que também poderiam existir, mas não são o foco aqui). Os homens que aparecem no filme são poucos, uns na televisão a dizer disparates misóginos, outro um médico profissional e sem emoção, e outros numa cena de discoteca que parecem tão incompetentes nos jogos de género como as protagonistas. Assim, o teste de Bechdel é passado logo nos primeiros minutos, num filme que é dominado pelas mulheres e pelas suas relações. A imagem, com a sua resolução 4:3, quase quadrada, e as cores esbatidas sempre que estão ausentes as amigas, ajuda a construir essa valorização da relação feminina de apoio contra uma cultura que parece querer contê-las.

Raparigas” enquadra-se numa onda de filmes que têm surgido nos últimos anos, como “Mustang” e “Bande de filles”, em que a relação entre mulheres é trazida para primeiro plano e que, apesar do seu sucesso, ainda parecem ser uma minoria. Mais do que filmes com super heroínas ou mulheres a tomarem o lugar de homens (como a Angelina Jolie tanto parece gostar), é necessário normalizar a relação saudável entre mulheres e construí-la como uma forma de resistência contra a cultura patriarcal que, ainda que esteja a levar alguns golpes nos últimos anos, parece ainda estar bem arreigada.

Pontuação Geral
João Miranda
Jorge Pereira
raparigas-no-limiar-entre-a-infancia-e-a-adolescenciaMais do que filmes com super heroínas ou mulheres a tomarem o lugar de homens, é necessário normalizar a relação saudável entre mulheres e construí-la como uma forma de resistência contra a cultura patriarcal