Terça-feira, 23 Abril

«Pájaros de Verano» (Pássaros de Verão) por Ilana Oliveira

Ciro Guerra retorna à sua temática indígena e ao cinema regional com Pássaros de Verão, e desta vez fá-lo ao lado de Cristina Gallego, estreante na realização, mas há tempos produtora cinematográfica, inclusive em parcerias com o próprio Guerra.

Dentro das suas obras repletas de cunho social e local, temos aqui o retrato de um clã indígena mais “metropolitano” que o proposto no seu filme anterior, a obra-prima Abraço da Serpente, de 2015. Complementando o ideal da perda de identidade, a dupla retrata o atentado histórico não só aos indígenas colombianos, mas a toda população nativa explorada ao redor do mundo pelo “bem maior” da colonização e evangelização branca.

A trama nos remonta à época inicial da exportação da erva canábis por fazendeiros colombianos, e o faz a partir do ponto de vista dos indígenas de etnia wayuu, uma das poucas que não se subjugaram à colonização espanhola até hoje. Da parcela amazonense até ao norte peninsular da região da Guajira, Guerra tece na sua filmografia um manifesto sobre a influência dos povos brancos na cultura colombiana e a luta para eternizar os hábitos perdidos ao longo do tempo.

Úrsula, matriarca da tribo que nos é apresentada, é a personagem mais autoral deste projeto, e representa a ligação das personagens com a mística indígena presente nos sonhos e na natureza – daí o nome Pássaros de Verão. Apesar de possuir e representar o aspeto mais honrável dentre os temas, Úrsula ainda sim é humana, e a atuação de Carmiña Martínez flui entre a assertividade de uma líder, e a conivência de uma mãe a proteger seu filho.

Tudo é alegórico aqui, desde as personagens até o visual desértico em contraste com a cor vermelha e as expressões da natureza, é possível destrinçar cada aspecto da longa metragem para a representação das diversas experiências resultadas do tráfico de marijuana. O protagonista Rapayet, interpretado por José Acosta, é aquele que fica dividido entre seus antigos costumes e a ganância, e sua esposa Zaida (Natalia Reyes), não por acaso é aquela que se entrega prontamente à comodidade da elite, sendo essa mudança subtilmente expressa por sua vestimenta e maquiagem.

O visual de “Pássaros de Verão” é também uma viagem atmosférica que rende uma das cenas mais belas deste ano, na qual Zaida e seu vestido vermelho são perseguidos pela câmara urgente e sagaz dos realizadores Guerra e Gallego num rito de passagem do clã wayuu.

A estrutura narrativa dividida em 5 capítulos estabelece o espectador num enquadramento temporal que permite analisar a relação de tradição vs. modernidade, ao mesmo tempo que o choca ao revelar a contemporaneidade de uma realidade dificilmente explorada e vivida por quem a assiste.

Por fim, Guerra e Gallego entregam ao público uma joia sobre o tráfico de drogas a partir de um ponto de vista inovador e pessoal, com a maestria visual e temática somente possível com o conhecimento de causa dos realizadores.


Ilana Oliveira

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