Sexta-feira, 19 Abril

«Vem e Vê»: luz nenhuma trespassa a lente das trevas

Pela primeira vez nos cinemas portugueses, um dos mais "perturbadores filmes de guerra" da nossa História.

“Era humano, agora sou alemão”

Encarna a criança, aliada ao jovem Fyora (Aleksey Kravchenko), que será o nosso guia perante um cerco de horrores no último filme de Elem Klimov. Mas já lá vamos! É nesta exclamação, com o intuito de afugentar o velho louco que adverte a estes “enfants” o perigo de vasculhar aquelas terras. Não poderia estar mais certo, o nosso protagonista encontra o brinde que tanto ansiava, sem saber que esse mesmo se convertia no seu mais intimo pesadelo: uma espingarda. Com essa mesma arma, quase seguindo as cantigas de teor militar popularizadas no universo yankee:This is my rifle, there are many like it but this one is mine. My rifle is my best friend. It is my life. I must master it as i master my life. Without me it is useless, without my rifle i am useless” (parafraseando Nascido para Matar, de Stanley Kubrick), este fraudulento coming-to-age dá-se como iniciado.

Fyore viu neste seu achado a sua entrada em grande para a resistência bielorrussa contra os invasores nazis, os alemães, os não-humanos que as crianças invocam como autênticos papões. O mundo do jovem instala-se numa fantasia concretizada quando dois “camaradas” entram pela sua casa adentro preparando-a para a sua partida para o acampamento clandestino. A felicidade de Fyora é cortada pelas lágrimas desesperantes da sua mãe, como se fosse esta a última imagem do filho.

Chegando aos cinemas portugueses sob um pretexto de uma cópia restaurada, Vem e Vê é um clássico absoluto do belicismo cinematográfico que nunca conforma-se com a devoção deste mesmo universo. Aliás, a viagem, que permanece longa na memória do espectador, revela-se numa ode à ira e aos caóticos sentimentos reprimidos, invocando a barbárie como um percurso existencial ao que é realmente um Homem.

Já o escritor Primo Levi concentrava esse pensamento lucido durante a sua “estadia” no campo de concentração de Auschwitz, experienciando os seus homólogos convertidos em farrapos humanos, despidos das características que o sempre tornaram “homens civilizados”. Essa redução ao estatuto animal é uma das armas do regime nazi, a fim de redefinir uma “raça superior” embutida num cenário darwinista (assim como é pronuncia o militar nazi no requiem, sem mostrar nenhum apontamento de remorso). Esse mesmo discurso, que consequências trará, joga em contacto com o prólogo, a dita criança que fantasia o “bicho-mau” alemão.

Porém, os dois pontos unem-se através de um autêntico “comboio” pela barbaridade cometida; Fyora transforma-se, a olhos vistos, num tremendo resto daquilo que fora e a sua mente é preenchida com as desumanidades que o espectador apenas experiencia em fora-de-campo (tudo remetido em travellings sob travellings tarkovskianos acompanhados por uma mistela sonora de ecos assombrosos e das melodias de Mozart, o elo cínico do civilismo). O rosto é envelhecido, decadente pelo choque e a constante negação que o retira do seu ponto térreo. Por outras palavras, a viagem de Fyora, que se assume como mera testemunha, não é mais que um sonho, formalmente falando, que depressa se embica pelo pesadelo labiríntico, onde o onirismo é arrastado pelo desencanto.

Vem e Vê ficou-se como o último filme de Elem Klimov, um retrato obscuro que suga vampiricamente qualquer otimismo e alegria residida no espectador, que se vê (verbo adequado em toda esta jornada) par a par com o seu protagonista impotente e debilitado. O realizador declarou que depois desta obra, consagrada no Festival de Moscovo, “perdeu o interesse em fazer filmes. Tudo o que era possível fazer, já o fizera.“.

Os judeus criaram uma palavra para caracterizar o genocídio do seu povo – Shoah (Holocausto). Para os bielorrussos, possivelmente Idi i Smotri [título original do filme] seja a expressão perfeita. 

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