Sexta-feira, 26 Abril

Porto/Post/Doc: um festival de cinema político, não de glamour

O Porto/Post/Doc decorre de 20 a 29 de outubro

Seja no imaginário colonial do cinema português (Fantasmas do Império), no conflito no Ultramar (Guerra), num Bairro do Aleixo destroçado prestes a sucumbir (A Nossa Terra, o Nosso Altar), na guerra civil espanhola (Noite Perpétua), no conflito israelo-palestino (Of Land and Bread), ou nos “pseudo-heróis” que condenaram Martin Luther King ao estatuto de maior risco da história dos EUA , fantasmas, memórias e realidades cruéis estão por todo o lado da programação 2020 do Porto/Post/Doc, certame que arranca na cidade invicta esta sexta-feira, 20 de novembro, com um objeto musical delicioso em torno de David Byrne, todo ele embrulhado em mais uma “joint” memorável de Spike Lee. 

A escolha [de “David Byrne’s Utopia” na abertura] parte de uma vontade nossa  muito grande em ter aqui esse filme”, disse ao C7nema Dario Oliveira, diretor de um dos mais interessantes certames do panorama nacional – e internacional – que arranca este ano com a pandemia Covid-19 em pano de fundo e enormes condicionamentos à programação presencial. Nada que o evento não tenha pensado por antecipação e, por isso mesmo, grande maioria das obras que serão exibidas nas salas estarão igualmente disponíveis numa plataforma online.  

Como é que se organiza um festival no meio de uma pandemia? Esta foi uma questão obviamente lançada a Dario, que nos responde que desde março havia a certeza que a edição 2020 seria complicada de programar:  “Começamos a procurar alternativas. Planos A e B para levar a cabo o festival”, explica Dario, salientando a ainda que mesmo com todas as restrições. o festival resiste no seu formato presencial, essencialmente pela antecipação horária das sessões. Por outro lado, desde março ficou logo na mente de todos a existência de uma plataforma online em paralelo, até porque há “muitos doentes de risco” que não podem visitar os cinemas como desejavam, mesmo que as “salas de cinema sejam locais seguros onde se respeitam todas as normas”.

Carta Branca a Eloy Domínguez Serén

Uma História de Amor Sueca

Os programas de Cartas Brancas, que temos vindo a apresentar desde a primeira edição, são sempre dedicados a cineastas com quem nós temos uma grande relação de colaboração ou de íntima afinidade cultural e estética. O Eloy, além de já ter mostrado os seus filmes aqui anteriormente, como o “Hamada”, tem toda a legitimidade e era um dos cineastas que queríamos que tivesse uma carta branca. (…) Esta carta branca assenta numa cinematografia que é muito querida ao Eloy, que é o cinema sueco, e apresenta três filmes com quase cinquenta anos: um documentário, um documentário ficcionado  e um filme de ficção. Os três focados no tema do crescimento, na entrada  da idade adulta, da música, da descoberta do amor, da natureza. Temas muito queridos e explorados no cinema do Eloy.”  

Um festival político, não de glamour 

Com o Forum do Real sempre como um ponto chave de todo o evento, Dario Oliveira considera que política e o atropelo dos direitos humanos fazem claramente parte do ADN do festival. “O Porto/Post/Doc é um festival de cinema político, não é um festival de glamour. É um festival que se preocupa com as questões que possam servir de encobrimento à realidade. O nosso envolvimento com aquilo que é a produção recente e a revisitação da história do cinema é sempre feita com essa mira, com esse foco de contarmos histórias do real e procurar aquilo que no cinema contemporâneo importa mostrar. Pode ser o cinema de urgência, situações que achemos serem muito importantes de serem descobertas pelo nosso público, pondo esse mesmo público em confronto com realidades às vezes escondidas. Tanto o “Of Land and Bread”, como outros filmes , como no nosso programa das cidades, com o filme do Billy Woodberry (Bless Their Little Hearts) ou de Charles Burnett (O matador de ovelhas) – filmes que demonstram a injustiça da sociedade e a perversão que é a vida nas cidades. Muitas vezes a cidade é policiada por ser um local de confronto e de perigo, não apenas pela delinquência, mas pela vontade de um capitalismo desenfreado que aniquila com a própria vida e a própria mudança natural e cíclica desses espaços. Esse processo de destruição das cidades tem que ser mostrado e discutido. (…) As cidades sem os turistas faliram e isso é uma prova que algo estava – provavelmente- errado. (…) Este humanismo que começa a desaparecer nos centros decisores é um dos grandes perigos da sociedade contemporânea.

A Nossa Terra, o Nosso Altar)

Essa vertente e incisão política entranha-se igualmente no cinema português a ser apresentado no certame. “No caso do filme do André Guiomar, sobre os últimos tempos das torres do Aleixo – um filme que demorou 7 anos a concluir – que mostra uma comunidade em desespero existência. Numa situação muito frágil de sobrevivência. Filmes feitos com amor pelas pessoas e com grande respeito pela dignidade que as pessoas merecem. Esse tipo de cinema é o tipo de cinema político que importa mostrar. O cinema português tem muitos autores que lidam com estas questões da realidade, cada um à sua maneira. (…) O Pedro Costa, por exemplo, está aqui com um filme bastante importante da carreira dele, para falarmos do que é a vida nos subúrbios portugueses. Por exemplo, da comunidade cabo-verdiana, com esse grande ator, o Ventura”.

O desafio – Um filme imperdível de toda a programação? 

‘O Movimento das Coisas’. É o único filme da carreira de uma bela cineasta que não quis dedicar-se ao cinema, a Manuela Serra. Fez este belo filme entre o fim dos anos 70 e os anos 80, numa pequena comunidade rural, perto de Viana [do Castelo]. O filme só foi estreado em 1985 e entretanto perdeu-se. Agora foi objeto de uma recuperação e digitalização pela Cinemateca Portuguesa e vamos mostrá-lo em estreia. É um filme que os mais novos não viram, com certeza, pois passou no [já extinto] Festroia nessa altura. É um filme com uma capacidade, com um domínio daquilo que é a realização, com um olhar inspirado, com uma poesia  das imagens absolutamente único – é uma peça rara – e que aqui vai ser visto no seu ambiente natural, que é o grande ecrã de um cinema.

Notícias