Sexta-feira, 26 Abril

Omar Blondin Diop, o verdadeiro maoísta de “La Chinoise” de Godard

"Juste un Mouvement" estreou na Berlinale e foi exibido no Doclisboa, e Hot Docs

O Omar morreu!”, ouviu-se em Dacar, Senegal, a 11 de maio de 1973. Omar Blondin Diop, jovem filósofo e militante, que participou no filme “La Chinoise” (1967) de Jean-Luc Godard, teria supostamente cometido suicídio na sua cela, na prisão da Ilha de Gorée. 

Os familiares não acreditam na versão oficial e crêem que foi assassinado. Ele representava uma afronta à agenda do governo neocolonialista de Léopold Sédar Senghor, e era próximo do Movimento Internacional Situacionista.

Quase 50 anos depois, o artista e cineasta Vincent Meessen pega em Omar e “La Chinoise para executar um filme entre a ficção e o documentário, “Juste un Mouvement”, que mais que a morte do revolucionário, procura mostrar a sua resistência em vida.

É a partir da reescrita da História de Omar e a colocação à prova no presente de “La Chinoise” que Meessen cria um “diálogo, com distância, de trabalhar o pensamento, as ideias e as formas de uma agenda que permanece atual.

Juste un Mouvement” é também uma continuidade a “One.Two.Three” (2016), onde se explorava a participação de intelectuais congoleses no movimento situacionista, tudo contado através da experiência de Joseph M’Belolo, um estudante na Bélgica.

Estivemos à conversa com Vincent Meessen, por ocasião da estreia do seu filme na Berlinale, na semana passada, na secção Fórum. Depois de Berlim, o filme chega ao Doclisboa hoje, 11 de março, em modo virtual.

Vincent Meessen

Ao longo da sua carreira tem escolhido falar da colonização e do Movimento Internacional Situacionista. Porque escolheu o Omar Blondin Diop para falar novamente disso e, com ele, trazer o filme de Jean-Luc Godard? 

Godard para mim nunca foi um ponto de partida. Antes deste filme fiz vários projetos, entre eles um no Congo, em 2015, executado para a Biennale de Veneza, onde ocupei o pavilhão belga. Aí decidi convidar dezenas de artistas para trabalharem um pouco em torno dessa ideia do Internacionalismo Situacionista, movimento cujo último congresso tinha sido em Veneza (1969). O meu conceito tocava nesse grupo que começou a fazer um trabalho na cultura de forma dissidente e revolucionária. Por isso mesmo viajei até Kinshasa para encontrar-me com um estudante congolês que participou nessa aventura, na década de 1960, em Paris. Nesse filme, que se chamava “One.Two.Three”, mostrava que havia uma relação entre certos estudantes africanos e uma vanguarda que considero a mais radical por ter duas agendas, cultural e política, num espaço-fronteira que me atrai. E foi na pesquisa para esta produção que dei de caras com uma fotografia do Omar. É uma imagem que encontramos no filme e que circulava também em Dacar, percebendo assim que havia uma relação entre a teoria situacionista e o Senegal.

Parti dessa foto. Muitas vezes, os meus trabalhos começam a partir de um signo, uma imagem que vai despoletar um processo de investigação. Frequentemente, estes processos são rápidos, mas às vezes não. Por isso, quando sinto que existe algo a operar na atualidade, passo a uma fase suplementar que implica ir ao terreno verificar se existe material para fabricar algo – e não apenas libertar um fantasma. Na história do Omar, a sua família teve de lidar em 2013 com a reafirmação da versão oficial da sua morte por suicídio e não um assassinato. Esta versão, que se repercute quarenta anos depois, foi para eles como uma segunda morte, pois nunca será alterada. Por isso pediram a reabertura de um inquérito sobre a morte. O meu filme acompanha também isso, o entender esse pedido e compreender melhor esta figura.

Omar Blondin Diop e a última edição da revista Internacional Situacionista

O facto dele ter participado no “La Chinoise” de Godard, que tem um fundo, uma matéria cinematográfica presente, serviu também como interesse. Isto além de muitas outras coisas que descobri sobre ele e que o tornaram numa personagem muito interessante. E no Senegal, existe uma situação de tensão entre a oposição e o presidente atual. E vemos essa atualidade também no filme, os problemas e os novos pensadores e militantes.

Para resumir, aquilo que levou-me a ficar atraído pela figura do Omar, além de tudo o que já descrevi, é o facto dele ser um indivíduo com um projeto de realmente transformar a sociedade e que foi influenciado fortemente pelo Movimento Internacional Situacionista.

A questão dos novos pensadores africanos surge particularmente naquela bela cena no comboio. Qual a importância de mostrar estes novos pensadores para contrariar a perspectiva eurocêntrica da colonização?

Sim, creio que há dois movimentos importantes no filme e talvez um terceiro, que é esse que fala. O primeiro é, naturalmente, fazer um retrato daquele militante, que é uma espécie de mito em Dacar, mas que as pessoas não sabem bem o que fez e quem era. É o que chamo, o trabalho de historiador: reescrever a sua História e transmitir isso aos outros.

O segundo é mais pessoal e está ligado ao elemento cinematográfico, à questão de um ensaio, de pegar no método de Godard, colocá-lo à prova no presente e ver o que podemos fazer com ele. É uma espécie de diálogo, com distância, de trabalhar o pensamento, as ideias e as formas de uma agenda que permanece atual. Não vamos deixar isto no passado, a agenda permanece.

O terceiro é uma reencenação da cena do comboio do filme do Godard. Coloco em discussão um militante e um intelectual. O tema já não é o recorrer à violência como no filme original, mas antes que tipo de justiça e democracia precisamos. Na primeira parte do filme falamos principalmente da justiça restaurativa e da família do Omar que pede uma reparação que nunca teve. Já a cena de abertura é o que chamamos de justiça distributiva, que é o que esperamos de uma democracia, que responda de maneira igualitária a todos. (…) No Senegal, hoje em dia, querem reapropriar-se da sua História, funcionando isso como uma crítica forte aos belgas, aos portugueses, aos franceses, etc, que o que fizeram foi empilhar isso em cultura de museus. Nesse pensamento que está na cena, entre um militante e um intelectual, está a captura e reinterpretação das ideias, talvez do Omar. Talvez mais o espírito que as ideias.

E a cena que vemos os chineses a inaugurarem um museu lá. Crê que se pode considerar uma nova forma de colonização?

É um pouco a discussão que aquelas duas personagens têm no comboio, onde o militante questiona o intelectual se não estão a repetir as coisas e vão ser comidos por outra boca. Todos temos consciência que o terreno africano foi completamente modificado, resultando numa organização europeia muito forte em inúmeros sectores de forma complexa. Hoje em dia a China é um ator muito importante. Será que o Felwine é muito positivo ou ingénuo por não ter problemas civilizacionais – como ele diz, um confronto de culturas? É um pouco verdade e vi isso no Congo, onde os chineses que se instalam aprendem a língua em seis meses, enquanto os belgas vivem lá vinte anos e não os ouço a falar a língua. Estes são comportamentos totalmente diferentes. O filme trabalha muito na perspetiva da circularidade e da questão da repetição. Será que vamos repetir os mesmos erros, a mesma História? Como podemos evitar isso? Bem, talvez um filme possa ajudar um pouco.

Ver a China como um novo colonizador, não. É diferente, é outra coisa. E penso que a cultura chinesa que vemos já foi completamente assimilada por alguns senegaleses presente no meu filme, como através do Tai Chi e Kung Fu. O Tai Chi é interessante, pois é uma filosofia, não é um desporto. É encarar-se a si mesmo e fazer frente à vida quotidiana. Isso é muito interessante e ao nosso jeito fazemos todos. 

Esta é uma resposta que não há branco ou preto, é mais complexo que isso. Mas também, esta projeção chinesa é totalmente fora da revolução camponesa que tiveram e que começou como cultural. Ninguém é ingénuo em relação a isso. (…) Eles estão lá, inauguram museus com aquela relação de “soft power” (poder brando) entre o diretor do museu e o seu vide-presidente, que efetivamente é um homem muito importante. Quis ter duas pessoas a interpretarem esse momentos, sempre entre o documentário e a ficção, numa viagem que deixa o espectador em permanente alerta. E somos também conduzidos por essas personagens. Não sabemos onde vamos, mas prosseguimos. 

Ao ver o seu filme também fui transportado para outro belga que vi no Doclisboa no ano passado, o “Palimpsest of the Africa Museum”. Esta discussão da descolonização da mente, que vai desde estátuas e monumentos feitos à glória dos tempos idos, até à educação e a forma como ainda se abordam os descobrimentos, conquistas e escravatura, têm provocado uma grande discussão em Portugal, às vezes até de forma bem agressiva. Como estão a correr na Bélgica estas discussões?

Sim, a situação mudou muito. É um trabalho que tem sido operado de duas maneiras. Há muitos militantes afroeuropeus, a maioria belgas com ascendência africana que conseguiram nos últimos anos chamar a atenção da imprensa e de parlamentares sobre essa questão. E temos também uma vertente, principalmente na arte contemporânea, por uma série de artistas belgas, ou alguém como o Sammy Baloji, congolês que vive em Bruxelas. Já estamos nesta discussão há dez anos e hoje em dia esses militantes e artistas fazem parte da discussão sobre o tema.

Houve também o Black Lives Matter, que provocou um choque global, tal como o relatório do Felwine Sarr, sobre a restituição de colecções museológicas “às origens”,  que fez com a Bénédicte Savoy, encomendado pelo Presidente de França, Emmanuel Macron. Documento que também caiu como uma bomba no mundo.

O Museu Real da África Central (foco de “Palimpsest of the Africa Museum”) mudou a face, mas acho que não colocou as verdadeiras questões. Esta discussão vai ser longa, difícil e muitos museus vão fazer de tudo para não mudar nada, até porque não estão preparados e são contra o que o relatório preconiza. Cada caso é um caso e tem de ser analisado e contextualizado individualmente. De qualquer maneira, é um tema que está no campo mediático e, de maneira alargada, a questão colonial começa a ser discutida também nas escolas. Vai ser um trabalho enorme e falta ainda muito por fazer. 

E não acha que a progressão da extrema-direita na Europa pode emperrar ou travar essa discussão?

Não creio. Não sei como fariam. Sei que há questões identitárias fortes em jogo. Aqui na Bélgica, no norte do país, existe muito essa tendência para a afirmação de uma identidade. Todos esses fantasmas são coisas que devemos combater de maneira determinada e penso que o cinema participa nisso. Vai ser preciso tempo, flexibilidade, inteligência e sensibilidade para não estar simplesmente num combate onde as opiniões distintas não podem ser discutidas.

Todo este discurso identitário assenta em medo, a maior parte infundado, mas que legitimamente parte de pessoas que não tiveram a chance de frequentar o ensino e que reagem de forma bruta a certas questões. Há um trabalho de pedagogia a fazer. Creio que existe uma diferença entre alguém que defende a extrema-direita como projeto político e um cidadão mal informado que reage de forma básica. Não devemos meter tudo no mesmo saco e é preciso trabalhar muito essa questão. 

E sendo um artista, em tempos em que se fala tanto da “cultura do cancelamento”, vemos grupos a destruir estátuas e mandá-las ao mar. Estátuas, também elas obras de arte, seja de figuras dos tempos coloniais, ou reis, etc. Em Portugal, por exemplo, temos uma série de monumentos que refletem os Descobrimentos e há quem tenha defendido que deviam ser demolidos. O que pensa sobre esta questão?

É um outro tipo de discussão, mas evidentemente está ligada ao que falamos. Creio que essa lógica de desmontar as estátuas, por exemplo, não é forçosamente a mais interessante. O que pode ser interessante é introduzir uma reflexão artística sobre as estátuas no espaço público e como certas coisas podem ser contextualizadas. Não há uma única resposta para esta questão, mas também é preciso entender o questionamento, também legítimo, que essas estátuas são uma forma de imposição no espaço público de um imaginário conquistador. 

Sabemos bem que em Portugal, que teve um império gigantesco, existe uma enorme nostalgia e um difícil trabalho de memória. Depois da saída das colónias, da guerra, existe uma agenda de sofrimento e desenraizamento. E até já vimos alguns cineastas abordarem isso, como a Salomé Lamas e o Miguel Gomes, de formas diferentes. Eu e o Gomes somos da mesma geração e falamos disso mais abertamente porque temos um distanciamento a esses tempos que os nossos pais não tinham. E temos também uma outra educação, que foi-nos fornecida por eles. Estamos melhor armados para compreender o que se passou nesse passado e trabalhar isso na forma como afecta o hoje.

Ainda sobre as estátuas, há muitas respostas possíveis, desde a mais radical, que pode interessar-me, mas necessariamente não devemos tratar todas as estátuas da mesma maneira. Isso não acho interessante. Acho muito melhor trabalhar as coisas em função do contexto. Trabalho assim todos dias. (…) Sinto que estamos a viver um tempo muito revolucionário, um pouco como antes de 68. Por isso também acho que o meu filme tem sentido nos dias de hoje. Para confrontar isso. Que vamos fazer? De que lado estamos? Que podemos mudar e como podemos mudar? E o que queremos guardar dessa herança?

Pessoalmente, não tenho um programa de fazer a revolução aqui, amanhã, mas creio que existem mudanças revolucionárias a fazer. Grandes, grandes mudanças. (…) Por isso interesso-me por aquela figura do meu filme (…) Hoje em dia estamos perante reflexões micropolíticas, mas é por aí que temos de começar.

E esta é uma temática que vai continuar a trabalhar no futuro? Tem algum novo projeto agendado?

De momento não. Bem, há um pequeno espaço que se cruza e que parte de exposições que fiz no Canadá e que tocam num sindicalista das Caraíbas, originário da Jamaica, que trabalhou a partir das ideias situacionistas, usando-as nas lutas que travou no seu país. Mas ele faleceu. No Congo encontrei a pessoa viva, neste encontrei o Omar, que está morto, mas que após todo o trabalho e investigação permitiu-me falar dele. Poderia funcionar, pois ele conecta-se com todas essas ideias radicais dos situacionistas num terreno diferente no 3º Mundo. Mas neste momento não tenho ainda informações completas para saber se vale a pena fazer qualquer coisa sobre ele, e se existe um tema no presente que possa ser interessante de ligar. Mas não estou a trabalhar intensamente nisso, apesar de já ter mostrado, nas exposições, algumas revistas, textos e discos.

Também encontrei todo um conjunto de material junto da família do Omar que mostrava uma reflexão das ideias situacionistas por parte dos seus irmãos. Talvez surja uma publicação onde possa cruzar ainda mais informação. Mas primeiro, a ideia é acompanhar bem este filme, de o fazer viajar por África, e sobretudo de fazer uma première no Senegal. Creio que o mais importante é mesmo que o filme seja visto no Senegal, que seja exibido nas universidades.

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