Sexta-feira, 26 Abril

Nheengatu: “O Brasil não foi descoberto, o Brasil foi invadido”

Frente a uma esquadra portuguesa que aporta na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que se inicia hoje, tal como o Doclisboa, o documentário “Nheenagtu” surge em ambos os certames como um vetor de excelência pelo mapeamento dos resíduos históricos de uma invasão. Exibido na abertura do Doclisboa, o novo filme de José Barahona, numa ponte entre Lisboa x Amazonas, é um estudo dos traumas e de reinvenções. Nele, o realizador de “Estive em Lisboa e Lembrei de Você” (2015) faz uma viagem pelo alto Rio Negro, na Amazónia profunda, para cartografar o falar de uma língua imposta aos indígenas pelos antigos colonizadores.

Que Amazónia você foi buscar com este filme e o quanto ela se articula com a ideia de nação que o Brasil parece ser hoje?

O Nheengatu e os seus falantes são uma língua e um povo distintos. Este “outro país” é um lugar de modernidade agarrada a marcas de tradição muito fortes, onde as línguas, e não só o Nheengatu, mas também o Baniwa e o Tukano, entre outras, são a marca mais evidente disso mesmo. O cidadão português mais naif, que eu também sou, poderia ir à procura do indígena nu, pulando nas árvores caçando e pescando num jardim do éden da floresta. Esse mundo já não existe. Se existe no Brasil uma tradição histórica, essa tradição só deveria ser a indígena. Mas não é. Ela é também uma tradição histórica europeia porque a influência da Europa se dá há mais de quinhentos anos. Essa língua misturada com uma outra língua europeia, quem sabe já com marcas africanas dissimuladas, é um reflexo do Brasil de hoje. Ficaram marcas portuguesas, que aliás os portugueses gostam muito de salientar, mas não necessariamente positivas. Essas marcas são o que são. Elas mostram a força cultural que o Brasil tem hoje, mas também têm atrás de si um passado de muito sofrimento, de muito sangue de uma miscigenação forçada, não pelo pendor mais amigável ou romântico dos portugueses com as indígenas, mas da força bruta do estupro. Isto ainda são marcas vivas na região do alto Rio Negro, quando encontramos os muitos descendentes, filhos de várias indígenas, espalhadas ao longo do Rio, e do mesmo poderoso homem branco do regatão e da borracha. O Nheengatu é também isto: a alma dos seus falantes, os indígenas que habitavam a beira do Rio, que foram submetidos a esse estupro físico e cultural e cuja língua foi trocada por uma outra que o invasor levou.

José Barahona em “Nheenagtu

Qual é o lugar do Doclisboa hoje para servir de lançamento a um filme como o seu e como a Mostra de São Paulo apresenta-se como uma vitrine para abrir o diálogo com os brasileiros?

Acho que é a terceira vez que um filme meu, (“O manuscrito perdido“, em 2010, “Alma Clandestina“, em 2018 e agora “Nheengatu“), estreiam em datas muito próximas nos dois países, nestes dois festivais. É uma ponte que um dia gostava de explorar ainda mais: este salto transatlântico do Doclisboa para a Mostra de São Paulo. Quando fiz “O Manuscrito“, pensava que ele iria ter um impacto grande em Portugal pois filmei os povos indígenas a dizerem que “O Brasil não foi descoberto, o Brasil foi invadido”, coisa que ainda hoje não é muito óbvia para todos em Portugal. E talvez por isso o filme foi muito bem recebido no Brasil e passou mais desapercebido em Portugal. Não sei como será com o “Nheengatu”, mas o Doclisboa é a melhor montra em Portugal que podia pedir para iniciar esta “viagem” de divulgação e exibição do filme, ainda mais sendo o filme de abertura. A Mostra, até por este ano ser online para todo o Brasil, perdendo a magia da sala, mas ganhando a dimensão continental, é também um lugar privilegiado para exibir o filme.

O que o Rio Negro te apresentou de mais desafiador e de mais resiliente?

A região do Rio Negro, a zona ribeirinha que é a única que conheci, pois é a única para onde se consegue viajar através de barco, é muito inóspita para nós não indígenas. É difícil fazer um filme ali. Embora seja uma zona onde a modernidade já chegou, onde as pessoas vivem como nós, em casas de madeira, com geradores a gasolina para verem televisão à noite e usam roupas compradas na cidade, ao mesmo tempo não existem lojas, hotéis, restaurantes e muito menos rede de celular.

Tivemos de montar toda a nossa infraestrutura num barco que alugamos para fazer o filme, onde dormíamos e fazíamos a comida que levávamos em arcas ligadas a um gerador que funcionava 24 horas por dia. Só assim nós conseguimos nos manter durante quatro semanas, a viajar pelas profundezas da floresta no Rio Negro, ultrapassando a linha de fronteira com a Venezuela e a Colômbia, numa zona de uma beleza extrema onde o clima não nos é propício. A humidade, o calor e os mosquitos tornam o nosso dia a dia penoso e difícil. As doenças e os micróbios afetam-nos mais do que podíamos esperar, a malária espreita a cada curva do rio, e as disenterias podem ser fatais de tão intensas. Se quando o branco chegou aqui trazia doenças mortais como a gripe para as populações indígenas, hoje somos nós que não temos resistência para aqui viver tranquilamente. A falta de rede de internet é um sintoma gritante quando nos vemos sem ela, da nossa dependência das tecnologias. Toda a equipa, eu também, estava em contacto quase permanente com a família, amigos e redes sociais. Isso acaba ali de um momento para o outro e, por vezes, damos por nós, a olhar para o telefone à procura de rede onde sabemos não existir. É um sintoma. Por outro lado, há a cultura indígena, bem diferente da nossa, que entra em choque muitas vezes connosco e ainda mais com a forma habitual de fazer filmes. A obsessão da rentabilização do tempo, a pontualidade é tudo muito relativo ali naquele lugar onde o nosso barco partiu da cidade com dois dias de atraso, o que foi considerado normal pelos locais. O valor do dinheiro e da palavra também é complexo. O branco, que vem de fora, parece ter a imagem de cifrões grudados na cabeça. Isso acontece em todo o mundo, mas ali, talvez porque desde o começo que os brancos vieram oferecendo coisas, ainda é mais forte esse sentimento: o sentimento de que se eles nos tiraram tanta coisa, agora eles têm de deixar cá. Tudo o que filmamos foi pago, todas as pessoas e lugares. Por vezes, envolvendo negociações muito duras e complicadas. É compreensível, mas lidar com tudo isto na feitura de um filme não é simples.

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