Sexta-feira, 26 Abril

Dario Argento: “O coronavírus representa a nossa impotência”

Um dia depois de ser homenageado com um tributo honorário pela sua trajetória pelas veredas do terror no Ca’ Foscari Short Film Festival, em Veneza, o romano Dario Argento já está imerso em planos para iniciar as filmagens da sua nova longa-metragem, “Occhiali neri”, agendadas para o segundo trimestre de 2021.

Desde “Drácula 3D”, exibido em Cannes em 2012, que Dario não filma, tendo no currículo pérolas pop do assombro e do sangue como “Tenebre” (1982) e “O Mistério da Casa Assombrada” (“Profondo Rosso”/ “Prelúdio Para Matar, no Brasil), pelo qual ganhou o prémio de melhor realização em Stiges. Nesta conversa com o C7nema, o artesão do giallo, termo italiano para thrillers de horror onde o sobrenatural e a psicopatia caminham de lâminas em punho, falou desse novo projeto e da sua experiência de 50 anos como realizador. A efeméride se remete ao cinquentenário de “O Pássaro com Plumas de Cristal” (1970), a sua estreia como realizador. Antes, o cineasta, que chegou aos 80 anos no dia 7 de setembro, já havia trabalhado como roteirista, escrevendo inclusive um faroeste icónico. Com a palavra, a prata do medo:  

Envelhecer dá medo? O que mais assusta um mestre do terror como o senhor?

Hoje, o meu maior medo é o coronavírus. E não só por ele ter atrasado os meus planos de filmagem de “Occhiali neri” e deixado a Itália em peso confinada, prendendo-me dentro de casa durante quase seis meses, saindo mesmo só para comprar comida. A covid-19 mete medo porque representa a nossa impotência e ela nos leva a um desânimo coletivo. Por isso, ela é a peste do século XXI. O meu cinema é universal porque fala dessas impotências que nos assombram, ao colocar diante de um perigo que não obedece uma lógica de sanidade. Os meus monstros são criaturas que têm interesse na vida alheia, que invadem a rotina do próximo. Como o coronavírus o fez.  

Asia Argento vai protagonizar Occhiali neri

O que esperar de “Occhiali neri” após a pandemia e que monstros há nele?

Vamos filmar em abril, com todos os protocolos de segurança, assim que tudo estiver mais tranquilo no mundo. Pelo menos é o que espero. É a história de uma jovem que perde a visão num acidente e precisa escapar de alguém que a persegue, um monstro, e conta com a companhia de um menino chinês e de um cão na fuga.

Fala-se muito na expressão “jump scare” hoje no horror, assim como se fala bastante em “novo terror”, que seria mais gráfico, menos pautado em sustos. O que estes conceitos representam na sua dinâmica do medo no género?

Eu não analiso muito o que os outros realizadores fazem ou o que pensam sobre mim porque sou muito instintivo na maneira como filmo. Escrevo um guião, desenho o storyboard e filmo. Só depois de uns dois, três anos vou entender o que aquele filme simboliza no universo do terror. O que me interessa mesmo é Freud e Jung, porque todas as histórias que conto são a representação dos meus sonhos. A psicologia é fundamental. Depois da psicanálise, a representação do real adquiriu uma outra dimensão, que eu tento arranhar. E existe a pintura. Eu sempre uso a pintura como referência.

Mas e em relação ao próprio cinema? Há algo dele que o senhor utilize? Há filmes de horror da sua formação que o acompanham hoje?  

Quando ainda era muito jovem…criança… eu cheguei perto do que se entende como terror, pela primeira vez, ao acompanhar os meus pais numa exibição de “O Fantasma da Ópera”, com Claude Rains. Aquilo me fascinou num lugar muito estranho. Esse fascínio estendeu-se quando, ainda adolescente, descobri o expressionismo alemão e um certo cinema americano dos anos 1940, produzido por Val Lewton. Mas depois que virei crítico, a dimensão do assombro que me interessava era Bergman e Buñuel. Já no estilo, a principal influência que tive foi a Nouvelle Vague. Os franceses, com a sua liberdade, é que me ofereceram a autonomia que precisava para abordar o terror de uma maneira bem particular, trabalhando com a psicanálise.

Mas o senhor vem da Itália, a terra do neorrealismo. A influência de Rossellini pesou?

Na minha geração, não, apesar do respeito que tínhamos pelos neorrealistas. O cinema deles foi uma resposta a um momento histórico de fome e desesperança em Itália. O vazio, a falta de comida… tudo isso foi inspiração para ele. Sou de uma geração que viu a Itália ser atropelada pelo consumismo, que mudou a relação com o real.

Antes de começar a filmar, o senhor e Bernardo Bertolucci (1941-2018) trabalharam com Sergio Leone (1929-1989) no roteiro de um dos westerns com mais culto da história: “Era Uma Vez no Oeste” (1968), a iguaria máxima do spaghetti western. Qual foi o maior legado daquele filme tão diferente do universo do horror?

O Leone estava habituado a ter argumentistas mais velhos, com muita experiência de vida. Mas ele confessou para a gente que não sabia bem como construir figuras femininas tridimensionais. Foi aí que a nossa juventude entrou como um diferencial, pois éramos de uma geração que sempre valorizou a sabedoria das mulheres. 

Suspiria

As mulheres sempre têm papel central no seu cinema, sobretudo em “Suspiria” (1977), cujo remake recente, de Luca Guadagnino, o senhor parece não ter aprovado. Mas há algo no cinema italiano de que o senhor goste hoje? E no cinema de terror em âmbito global?  

Falta medo ao remake de “Suspiria”. Quanto aos italianos, o facto de a gente estar muito confinado a comédias, faz com que a produção atual não me impressione muito. Sobre terror… sim, há gente fazendo coisas potentes, em especial o Guillermo Del Toro.

Qual foi o simbolismo da homenagem do Ca’ Foscari Short Film Festival para si?

Foi muito tocante em especial pelo reconhecimento académico que recebi por parte da cena universitária de Veneza.

Aos 80 anos de vida, completando 50 de experiência na realização, o senhor consegue já avaliar o que acrescentou ao giallo, a toda a diversidade do terror e ao cinema como um todo, que, mais do que nunca, admira a sua estética?  

Todo o realizador conta histórias que, em alguma medida, são autobiográficas. Os filmes que fiz e o que ainda vou fazer refletem os medos que tinha quando era criança e aquilo que sonhei em pequeno. Filmar é a minha forma de ser criança. Ser criança é ser genuíno.  

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