Sexta-feira, 26 Abril

“O muro era muito alto”, mas não para a animação brasileira de Marão

Exibido no Monstra! de Lisboa, em março e projetado em mostras na Argentina, no México, Eslováquia e Alemanha, O muro era muito alto marca o regresso ao circuito dos festivais internacionais de um dos mais premiados realizadores do Brasil: Marcelo Marão, animador nascido em Nilópolis, no estado do Rio de Janeiro, há 48 anos.

 

Pela estrada afora, indo bem sozinho, ele realizou 14 curtas-metragens, que receberam 120 (!) prémios em 605 (!!) festivais pelo Brasil e o mundo. Os últimos foram no Canadá e em Portugal, pela curta Até a China. Ele, em paralelo, é um aglutinador de talentos, aqui e no exterior, tendo sido um dos criadores da Associação Brasileira de Cinema de Animação e tendo lecionado sobre o tema em diversas instituições universitárias do país. O seu novo filme é um trecho animado (integral) da longa metragem de ficção live action Unicórnio, de Eduardo Nunes, exibido na Berlinale, em 2018. Na trama, que se ambienta no que parece ser uma instituição manicomial, uma menina (Bárbara Luz) ouve o pai (Zécarlos Machado, um dos mais aclamados atores do teatro brasileiro) contar a fábula de um camundongo em busca de liberdade.

O primeiro filme cometi em 1996, mas as primeiras animações foram feitas, como flipbooks, nas orelhas dos bloquinhos do armarinho do meu pai em Nilópolis, nos anos setenta“, diz o cineasta, que hoje corre a todo vapor para finalizar a sua primeira longa, chamada Bizarros peixes das fossas abissais, no prazo exigido pelas suas fontes de fomento e pelos festivais mundiais que anseiam por um trabalho inédito dele.

Esta semana, o seu ratinho vai tentar a sorte no X Córdoba International Animation Festival (9 a 11 de outubro) e no 8° International Tour Film Festival, em Roma, Itália (9 a 13 de outubro). No seu país, O muro era muito alto vai para o ANIMAGE – 10º Festival Internacional de Animação de Pernambuco, que vai de 11 a 20 de outubro, e vai para o 29° Curta Cinema, no Rio, de 30 de outubro a 06 de novembro. Eis, a seguir, uma conversa do C7nema com Marão.

O que esse espaço das curtas-metragens significa como desafio neste momento da feitura da sua primeira longa-metragem?

Sempre considerei a curta-metragem como o ponto alto da produção de animação mundial. Em qualquer época. Longas e séries são formatos com intuitos e logísticas distintas, mas não são uma evolução derivada da curta; são paralelas e complementares. Diretores de animação que admiro circulam entre a curta e a longa por terem algo diferente a experimentar, a contar – a pessoa faz uma curta e depois uma longa e depois outra curta – e que se adequam a minutagens variadas. Fiz catorze curtas durante as últimas duas décadas e o projeto Bizarros Peixes das Fossas Abissais, em produção, é minha primeira experiência num filme de longa duração. A maior diferença – e a que mais felicidade me proporciona – é poder lidar com as mesmas personagens durante três anos e meio. Numa curta, eu convivo com a personagem durante – no máximo – um ano. Em trabalhos encomendados, o animador desenha a mesmo personagem por um mês, às vezes menos de uma semana. Numa longa, o animador é capaz de desenvolver o estilo, o design, a personalidade, a atuação da personagem por um tempo muitíssimo maior, gerando uma intimidade e compreensão entre o animador e a figura desenhada muito afetuosa e humana. Paradoxalmente, a oportunidade de animar uma curta totalmente desvinculada da longa-metragem, concomitantemente à produção dessa, foi muito saudável e um respiro que nutriu ambas as produções: quando você trabalha muitos anos num mesmo projeto, parar por dois meses para se envolver temporariamente em outro projeto absolutamente alheio ao corrente, é fundamental para modificar a memória muscular dos hábitos. É como fazer um intervalo de dois meses para aulas de dança dentro de um período de três anos de treino de Karaté. A dança ajuda a lutar melhor e a luta ajuda a dançar melhor.

http://www.youtube.com/watch?v=j41_dL67JTk

Como é a relação desta sua curta com o filme de Eduardo Nunes? Como veio a encomenda para essa animação?

Sempre admirei imensamente as curtas-metragens de Eduardo Nunes, desde os primeiros filmes dele. Somos da mesma geração e participamos dos mesmos festivais de cinema desde as nossas estreias no cinema, com curtas ainda universitárias nos anos noventa. Ele esteve na Universidade Federal Fluminense e eu cursei na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas conhecemo-nos nos múltiplos festivais pelo Brasil durante os últimos vinte anos. Fiquei imensamente surpreso e em júbilo quando o Eduardo convidou-me para fazer uma sequência de animação na sua segunda longa-metragem, Unicórnio. A longa-metragem tem duas horas e três minutos de duração, sendo duas horas de live action e três minutos de animação.

Na prática, eu não poderia de forma alguma envolver-me em nenhum outro trabalho durante a produção da minha primeira longa, o “Bizarros Peixes…” – pelo prazo tão apertado para um volume tão gigantesco de labuta. Mas este convite era irrecusável. E preciso dizer que foi uma das melhores experiências profissionais da minha vida. Toda a produção do Unicórnio é envolvida mum ambiente de amor e tranquilidade, de carinho e respeito, de liberdade e empatia. A minha sequência animada era uma espécie de fábula contada em animação sobre um ratinho. Estive no set de filmagem durante um dia para acompanhar as gravações do rato verdadeiro, que aparece no princípio da cena, e para conhecer a equipa.

 

Em seguida, o Eduardo ofereceu-me uma liberdade criativa que eu nunca tive em praticamente nenhum trabalho encomendado. Ele dirigiu-me sobre tudo que considerava fundamental, mas permitiu-me desenhar a lápis no papel, em preto e branco, com o meu próprio traço e estilo e sem nenhuma interferência na decupagem dos planos e ângulos. O resultado foi uma animação tão autoral, que eles, gentilmente, permitiram que eu submetesse o trecho aos festivais de cinema como uma curta, independentemente da longa-metragem. Aguardei o término da carreira do Unicórnio nos cinemas e, atualmente, estou inscrevendo o ratinho com o título O Muro era muito Alto nos festivais de curtas-metragens. Uma das maiores diferenças técnicas desta animação é a janela de projeção utilizada, muito mais esticada que o normal. Isso proporcionou-me possibilidades de layout e enquadramento inéditas para mim, que eu só havia experimentado em quadrinhos. E um dos melhores conselhos do Eduardo foi sobre “não colocar a personagem no centro da tela; deixar sempre num dos extremos da imagem“. Gostei tanto deste conselho, que acho que vou imitar na minha longa-metragem também!

Como funciona o seu esquema de produção de desenhos hoje? Qual é o tamanho da sua equipa?

Apesar de Bizarros peixes das fossas abissais ser uma longa-metragem, toda a logística de produção assemelha-se a uma curta. Não é possível emular o sistema de produção dos grandes estúdios pela diferença fundamental de que este é um filme onde o realizador também é animador. Geralmente, o realizador (ou os correalziadores) de uma longa de animação supervisiona, acompanha e dirige uma equipa de animadores (que pode variar entre dezenas e centenas de profissionais em um mesmo filme), mas não anima. Este é a minha primeira longa-metragem e a proposta é tão autoral quanto a das minhas curtas anteriores, seguindo também as minhas idiossincrasias no modo de produzir.

 

Ao contrário da forma correta de se organizarem as etapas de produção de uma animação, que, obrigatoriamente, prevêm um storyboard seguido de um animatic, acompanhado de model sheets das personagens (etapas essenciais para o labor dos animadores, cenaristas e demais profissionais envolvidos), esta minha primeira longa não tem um storyboard prévio nem animatic com o planeamento, nem model sheets para referência. Eu e a animadora Rosaria estamos dividindo a animação da longa-metragem praticamente sozinhos. E as cenas são realizadas em ordem cronológica, com uma lógica teatral de evolução dramática, onde animamos as cenas rigorosamente na ordem dos acontecimentos. Isso possibilita a improvisação (algo raro numa produção de animação) e a evolução do design das personagens de modo espontâneo e orgânico, com detalhes da personagem acomodando-se ou sendo criados à medida que são redesenhados milhares de vezes – assim como acontece numa graphic novel de quatrocentas páginas, onde o protagonista desenhado na primeira folha é bem diferente da forma como está desenhado na última.A nossa equipe é bastante reduzida, contando basicamente com Rosaria (animação), Letícia Friedrich (produção executiva), Ana Luiza Pereira (Edição de Som), Wesley Rodrigues (Cenários), Alessandro Monnerat (Composição), Silvana + Hannah (pintura e digitalização), Fernando Miller + Cláudio Roberto (animação adicional), Duda Larson (Trilha Sonora) e eu (Roteiro, Realização e Animação). O filme irá totalizar por volta de sessenta profissionais envolvidos em etapas distintas, mas a trupe acima é a principal e constante durante os quase quatro anos de produção.

http://www.youtube.com/watch?v=9ZhgXKQO8tA

Qual é o maior desafio para a indústria de animação no Brasil?

Indubitavelmente, hoje o maior desafio é o mesmo de toda a produção audiovisual e cultural: sobreviver. Continuar trabalhando. Com liberdade temática e apoio para produção, distribuição e exibição. A animação gera muitos milhares de trabalhos no Brasil, é fundamental para a identidade cultural do nosso país, tem sido continuamente reconhecida e premiada em todo o mundo e não pode ser interrompida.

Pela primeira vez, em mais de cem anos, há produção em qualidade e quantidade de curtas/longas /séries/ publicidade animadas em múltiplas técnicas (desde tradicional e cut-out vetorial até stop motion e 3D) em todas as regiões do país. Existe formação académica universitária, entidade representativa da classe, produção literária crítica e de memória. E existem janelas de exibição e um público cada vez maior, um público interessado em animação brasileira. Não podemos parar.

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