Sábado, 27 Abril

Renée Nader Messora e João Salaviza mostram a luta pela terra e a resiliência dos Krahô em “A Flor do Buriti”

Continuando com os Krahô, depois de “Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos,  a dupla de cineastas Renée Nader Messora e João Salaviza volta a desafiar a tradicional representação dos indígenas nos media apresentando “A Flor do Buriti”, um novo projeto, estreado e premiado no Festival de Cannes, que mostra a luta pela terra e resiliência da comunidade da região de Tocantins no Brasil. 

Entre registos de ficção criteriosamente encenados e outros do mais puro tradicionalismo no que diz respeito ao cinema documental,  “A Flor do Buriti” vai mostrando alguns dos episódios dramáticos da história dos Krahô, em especial um massacre perpetrado por fazendeiros na década de 1940, ou a forma como eram vistos e tratados pela ditadura militar nos anos 1970. Nesse processo, Renée Nader Messora e João Salaviza dão a palavra a um povo que no presente mantém uma conexão única com a terra e se organizou para defender o seu futuro, até mesmo dentro da esfera política brasileira.

Foi em Cannes que nos sentámos à mesa com João Salaviza e falámos sobre a  “A Flor do Buriti”, que chega às salas de cinema nacionais a 21 de março.

Como é a vossa relação com os Krahô e como chegaram até ela?

A Renée começou a visitar os Krahô em 2010 e eu em 2014. Por isso, já temos uma relação longa com a comunidade. Na verdade, passamos mais tempo com eles que fora da comunidade. Agora temos uma criança, que tinha 3 anos quando começámos a filmar e 5 quando acabámos. Hoje em dia, estar com eles é estar com a família e amigos. Temos diferenças culturais óbvias, mas temos uma grande ligação a eles. Este filme e o nosso anterior são os nossos trabalhos mais visíveis com eles, mas existem muitas outras atividades e ações que fizemos e fazemos que não tiveram a mesma exposição. Vivemos na comunidade e somos indigenistas, ou seja, não somos indígenas, mas participamos numa aliança e temos uma grande conexão, sendo ativistas das suas causas. 

É o segundo filme que fazemos com eles e tudo é executado de forma muito coletiva. Este não é um filme daqueles que escrevemos o guião em casa, vamos para as filmagens e dizemos para fazer o que está escrito, dando um prazo de 6 semanas para acabar os trabalhos. É o oposto. 

Temos as nossas ideias e conceitos de cinema, mas eles também têm palavras a dizer. Trabalhamos dia a dia e há dias em que nem filmamos. E esta também não é uma daquelas filmagens em que captamos tudo, pois a partir do momento que escolhemos filmar em 16mm, isso é impraticável. Há limitações e não podemos deixar a câmara ligada à espera que algo aconteça.

Mas como dizia, é acima de tudo um processo coletivo. Eles participam no guião e filmamos e reafirmamos, de formas diferentes, as coisas. Muitas vezes também dizem que algo que está escrito não é bem assim e mudamos. Todo o processo de filmagens é de permanente conversa.

Mas a partir do momento em que abordam o passado dos Krahô e o seu presente, certamente existia um esqueleto do que pretendiam para o vosso filme…

Tínhamos ideias em torno da terra e da conexão deles a ela.  Essa era a espinha dorsal da nossa ideia para filme. Sabíamos também, ao princípio, que o filme acabaria com um bebé a nascer. E sabíamos que os Krahô falavam muito dos momentos históricos dos eventos e que teríamos uma reencenação deles. Por exemplo,  a cena do massacre, que até tem um dispositivo de voz-off que usamos pela primeira vez, tínhamos um testemunho oral de um dos sobreviventes. Foi o protagonista do filme, que não é um ator, que gravou há dez anos o sobrevivente a falar na primeira pessoa. É isso que ele verbalizou para o filme, o que ouvira há 10 anos. Foi essa conversa que serviu de base para o que estava no guião. 

A verdade é que cada sequência do filme foi criada adaptando-se às condições. Acho que este é um filme com muitos filmes dentro dele. Há partes em que ele se aproxima da abordagem clássica do documentário. Por exemplo, quando filmamos as celebrações e rituais, apenas chegamos perto deles e filmamos. Claro que há outras cenas muito encenadas, como aquele tipo no início a cantar, onde repetimos e repetimos. Já as cenas em Brasília, claro, eram puramente documentais. Não tínhamos dinheiro para ter 1000 figurantes no filme (risos). O que fizemos algumas vezes foi criar e filmar cenas de ficção no meio dessas demonstrações reais. “A Flor do Buriti” tem muitos filmes dentro de filmes. Ainda não encontramos a fórmula certa e espero também não a encontrar.

A Flor do Buriti” – Renée Nader Messora e João Salaviza

Mas aborda muitos temas, de vocês (cineastas) aos Krahô. Como desenharam isso na composição de uma produção?

É curioso que quando tento falar em termos mais técnicos do processo de filmagens, acabo sempre por falar de questões pessoais. Sinto que este é um pequeno filme e produção e os únicos estrangeiros no meio deles era eu e a René. Ocasionalmente, tínhamos mais dois ou três amigos. Mas mais que nós, temos os Krahô.

Além disso, cada um de nós tem mais inclinações. A Renée preocupa-se mais com a fotografia: iluminação e câmaras. Eu sou mais sensível ao som e à montagem. O filme não segue nenhuma ideia tradicional do cinema atual e é tudo muito artesanal.

Os Krahô não têm neles a ideia freudiana de separação do consciente e inconsciente. Nós sonhamos e é como ter um projetor de cinema na nossa mente. Mas, para eles, o teu espírito é algo material, existe. Quando sonhas, o teu espírito sai do corpo e pode ir muito longe. Por exemplo, estamos aqui em Cannes e muitos deles andam a sonhar com os mortos. Antes da projeção, o ator principal (que mais uma vez repito que não é ator) disse-me que andava a sonhar com os antigos líderes da comunidade, os quais conheceu em criança. E disse-me que eles estavam aqui em Cannes conosco. Os xamãs são médicos para eles e, quando estás doente, por exemplo com um problema de pele, algo físico, eles observam como uma questão holística. É o teu corpo, as emoções, o teu espírito que está com problemas. Um dos trabalhos dos xamãs é não deixar a tua alma ir muito longe do corpo. Os xamãs conhecem as almas das pessoas que estão afastadas do corpo e tentam trazê-las de volta.

No filme, a mulher, de certa forma, o seu espírito, está a viajar aos momentos da história da vida dos Krahô, nos anos 1940, no massacre, e nos anos 1970, quando se veem tratados como uma guerrilha no tempo da ditadura. Por isso, para nós, no filme, ela representa também uma testemunha de todas estas coisas. O que nós, cineastas, tentamos entender é o que do cosmos dos Krahô pode ser transcrito para a linguagem cinematográfica. Um filme destes filmado em Portugal, Itália ou outro país seria tratado como um tema paranormal ou algo ligado ao horror e fantástico. 

Para eles, os espíritos são parte da vida. Eles estão lá. Eles veem-nos e falam com eles. Não é uma questão deste espírito ser bom ou mau, ele está lá e existe uma confiança nisso. Nunca é uma questão de acreditar neles, como é para nós. Quando és um cristão e te assumes como tal, ninguém te pergunta se acreditas em Deus. Tu tens confiança que sim.

Fizeste vários filmes em Portugal e depois seguiste para o Brasil e já temos dois filmes sobre os Krahô. Vais continuar a trabalhar com eles? Haverá um terceiro filme? Há planos de uma trilogia?

Isto para nós é mais que um projeto artístico, é uma ideia de possibilidade de vida. A única coisa certa é que manteremos esta conexão com eles para sempre e tentaremos estar sempre, ou a maioria das vezes, com eles. 

Somos também pessoas que tentamos não ter pressa e não pensamos em 10 projetos cinematográficos ao mesmo tempo. Tentamos que as coisas façam sentido para nós e para eles. Nunca pensamos em levar uma equipa de filmagens para junto deles e existem muitas outras coisas a acontecerem atualmente, mas não posso dizer com certeza que haverá mais um filme com eles. A única coisa que sei é que estaremos com eles, com ou sem o cinema estar envolvido. 

Como é a situação dos Krahô atualmente, em termos populacionais? E como é a relação governamental com eles?

Atualmente existem 4000 Krahô e eles estão a crescer. No tempo do massacre, viram-se reduzidos a 300 e nos anos 1970 eram 350. Quando chegou o anterior presidente do Brasil (Jair Bolsonaro), um psicopata, houve um apoio ao avanço dos fazendeiros para as suas terras e abertura para o seu extermínio. Porém, agora, algo muito lindo está a acontecer. Não é apenas a melhoria com o regresso de Lula ao poder, mas os movimentos indígenas, antirracistas, LGBT e muitos mais, até de pequenos agricultores, estão-se a juntar para lutarem pelos seus direitos junto das instituições. Como vemos no filme, temos uma ativista ainda há um ano atrás que agora é ministra de uma nova instituição governamental ligada aos Indígenas. As coisas estão a mudar e existe muita esperança. 

Os Krahô também começaram a filmar e a contar as suas próprias histórias. Podemos esperar brevemente a chegada de um filme deles, com o seu olhar, num festival de cinema?

Muito antes de mim, a Renée e amigos começaram a trabalhar com eles. E eles começaram a pedir câmaras. Queriam criar as suas próprias imagens, pois normalmente, quando aparecem nos media, a sua representação é horrível. Eles começaram a fazer filmes há 10 anos. Pequenos e grandes. Filmam rituais, etc. E o que filmam começa a ser mostrado através de um movimento de cinema indigena que surgiu no Brasil há duas décadas, mas que ganhou muita força nos últimos anos. Noutras comunidades, já temos alguns realizadores indígenas que apresentaram os seus filmes em festivais de cinema tradicionais, e não apenas naqueles orientados para este tipo de filmes. Espero que no futuro, e seria maravilhoso, ver um filme dos Krahô nessas circunstâncias.  

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