Quarta-feira, 8 Maio

The Devil’s Bath: o potente regresso de Veronika Franz e Severin Fiala

Já com um certo culto em seu torno, especialmente depois do sucesso de “Goodnight Mommy”, que teve um remake norte-americano, a dupla de cineastas austríacos Veronika Franz e Severin Fiala apresentou no Festival de Berlim, na luta pelo Urso de Ouro, aquele que talvez seja o seu filme mais potente até agora: “The Devil’s Bath” (Des Teufels Bad).

Visitando o século XVIII no seu país, a dupla de cineastas, com o apoio na produção do conceituado Ulrich Seidl, conta-nos a história de Agnes (Anja Plaschg), uma jovem que se casa e passa o calvário de uma vida extremamente aborrecida e limitada à sua condição de mulher. Sem conseguir engravidar, progressivamente o seu estado mental vai se deteriorando, caindo na mais profunda depressão. É a partir desta história individual que Veronika Franz e Severin Fiala nos levam a um drama coletivo historicamente reportado com mais de 700 casos: o de mulheres que, impedidas de se suicidar porque nunca iam adquirir a “salvação” por parte da igreja, cometeram crimes para conseguirem a própria morte e a “salvação”.

Foi em Berlinale Palast que estivemos à conversa com a dupla de realizadores sobre o seu filme e sobre a forma como trabalham e veem o seu cinema.

O filme reporta historicamente a casos frequentes no século XVIII. Imagino que a investigação histórica a essa era tenha sido enorme.

Severin Fiala: Felizmente não tivemos que investigar todos os detalhes que enriqueceram historicamente o filme, pois alguém fez isso antes por nós. Houve uma norte-americana, Kathy Stuart, que escreveu um livro sobre o assunto: Suicide by Proxy in Early Modern Germany”. Ela tinha também um podcast onde falava dos homicídios que algumas mulheres cometiam para serem mortas e não terem de se suicidar. O medo dela é que o suicídio impedia a “salvação” final que a Igreja concedia. Os assassinos poderiam ter o perdão e seguir para o céu. Os suicidas não. Tinham de enfrentar o inferno. 

Ela identificou 700 casos e, para ser sincero, nunca tínhamos sequer ouvido falar desse fenómeno. O nosso pensamento foi como pode algo assim acontecer e nunca nos informarem disso nas aulas de história. Contactámos a Kathy e ela cedeu-nos todo o material da sua investigação, que incluía interrogatórios às mulheres. Ficamos fascinados com esse fenómeno.

Veronika Franz: Ficámos particularmente fascinados com o caso de uma mulher austríaca, uma camponesa que se casou. Ela falou do seu dia a dia, dos sonhos, medos e inseguranças. É o tipo de pessoa que nunca ouviríamos falar se não tivessem matado alguém. A História é injusta porque se preocupa principalmente  com a vida de gente famosa  – reis, artistas e militares – mas nunca com gente comum. Isso fascinou-nos e interessou-nos muito, mas simultaneamente dificultou a nossa tarefa de criar uma obra de ficção, pois tínhamos medo de trair a história real desta mulher. Inicialmente pensámos em fazer um drama de tribunal, mas depois de ler o que tínhamos escrito, achamos que se ela apenas dizia as coisas que viveu, perdia-se impacto. 

Severin Fiala: Ler o seu interrogatório dava uma sensação de que ela estava a falar diretamente connosco. Não queríamos uma espécie de mediação e preferimos contar a sua história e dia a dia, usado o cinema para transmitir ao espectador as suas sensações e voz  interna. Demoramos muito a completar o guião, também porque ela era alguém passiva, sofria de depressão e executava um ato atroz. É muito difícil escrever sobre alguém assim e tentar fazer com que as pessoas a entendam. Era fundamental para nós que o público se identificasse com ela e sentisse empatia. 

The Devil’s Bath

Esta abordagem histórica a um conjunto de mulheres esquecidas dá ao filme um tom feminista. Quão importante era para vocês mostrar a banalidade do dia a dia desta mulher – uma história que não encontra espaço num livro de História -, mas que na realidade enriquece o filme e torna a personagem tão especial? 

SF: Primeiro, e abordando a questão feminista, apesar de a partir de 1960 as pessoas começaram a interessar-se mais sobre questões ligadas à condição da mulher, este tema, dos assassinatos no passado como forma de obterem a absolvição religiosa, nunca chegou ao conhecimento geral. Era fulcral para nós estes factos chegarem ao Público. Para além disso, as pessoas precisavam saber que as mulheres também podiam ser assassinas atrozes e isso, para nós, é também uma forma feminista do filme ser.

VF: Além disso, era fundamental que as pessoas pudessem sentir o que ela sentia, principalmente aquela pressão. E há momentos em que o filme ganha um aspeto quase documental, como quando mostramos a pesca da carpa. Eram mesmo pescadores reais e tentamos captar o trabalho dela nessa posição. Queríamos que as pessoas vestissem a sua pele. E queríamos fazer uma comparação com os tempos atuais, onde a pressão mantém-se, ainda que de forma diferente dada a especificidade da sociedade capitalista em que estamos inseridos. O nosso objetivo era falar das pessoas que têm um problema e não funcionam “normalmente”, seja temporariamente, seja permanentemente Pessoas que não se integram na sociedade porque são vistas como diferentes. Este é um filme sobre pessoas que não se encaixam no estabelecido e que é expectável delas. A depressão é uma doença que não nasceu agora e este filme, embora reporte ao século XVIII, fala igualmente dos tempos modernos.

A Anja Plaschg faz um trabalho estrondoso como protagonista. Como chegaram até ela e como foi o vosso diálogo para chegarem à Agnes que encontramos no guião e no filme?

SF:   Bem, depois de escrever guião, começamos a trabalhar na música, que tinha de falar do passado, mas também do presente. Por isso, a banda-sonora começa agarrada ao passado e vai ganhando elementos cada vez mais modernos. Enviámos o guião e a música à atriz e ficámos estupefactos com o que ela sabia sobre esta mulher. Era como se ela a conhecesse. Fizemos uma audição, só nós três numa sala. Ficou claro para nós o seu carisma e presença. Como filmamos cronologicamente as coisas, ela encarnou bem a jornada daquela mulher e adaptou-se bem a tudo o que o guião exigia dela.

Foi uma verdadeira prenda a escolha dela como protagonista

VF: Sem dúvida, não apenas porque conseguia fazer as suas cenas com perfeição, como não se limitava a ler, mas a sentir o que estava a fazer. Nada se sentia artificial ou falso. Ela ia até à personagem, àquele tempo 

SF: Este é um trabalho muito técnico. Tens as luzes, as câmaras, etc. E com isso tudo num set, nunca te sentes livre. Mas ela conseguiu escapar a isso.

VF: E ela encontrava todas as borboletas que vimos no filme (risos), o que para nós era estranho porque filmamos numa época em que estão 2 ou 3 graus na Áustria e encontrar essas borboletas era uma tarefa impossível. Mas ela descobriu-as (risos). Na primeira cena, do casamento, estava sol, e era expectável que pudesse aparecer uma borboleta ou outra. Porém, nas outras cenas já não estava o sol e ela vinha sempre ter connosco com as borboletas. Claro que nós virávamos para o diretor de fotografia e pedíamos para ele filmar. ‘Filma qualquer coisa!” (risos), dizíamos. As cenas com as borboletas não estavam originalmente no guião e só foram adicionadas quando as selecionamos na mesa de montagem. 

Veronika Franz e Severin Fiala

Ao falarmos deste filme temos de falar de religião,  que agia como um elemento de pressão para esta mulher e comunidade. 

SF:  Naqueles tempos a igreja era mesmo poderosa para aquelas pessoas. Nos tempos atuais. temos novos dogmas, mas naqueles tempos o que a igreja mexia na forma das pessoas viverem as suas vida.

VF: Olhando para a atualidade, ainda vemos atos terroristas inacreditáveis em nome da religião. E há estudos sobre essas pessoas, em particular os bombistas suicidas, que apontam a estados depressivos. Eles querem morrer sem ofender Deus e fazem-no através do assassinato, em nome de Deus. Assim escapam a uma sentença divina e encontram o paraíso.

SF: Esse é um bom exemplo de um fenómeno semelhante que acontece nos nossos tempos. Na região em que habitamos sentimos que a religião não tem esse poder, mas existem outras bolhas de tensão. E cada pessoa vive numa dessas bolhas, que inevitavelmente têm nelas uma pressão coletiva. 

E ao fazerem a ligação do passado ao agora, tornam-se essencialmente cineastas do presente?

SF: Como cineastas desta era, penso que só podemos falar dos tempos em que vivemos. Falamos do passado no filme, mas é uma forma de falarmos do presente, ainda que com outros termos. 

VF: Para mim, o filme é principalmente sobre a depressão e como esse estado te consome aos poucos. 

SF: Visualmente trabalhamos as coisas em função da evolução da própria personagem. O filme começa solarengo, sente-se o verão e é mais colorido. À medida que as coisas vão avançando, tudo se torna mais sombrio e sombrio, tal como a alma da protagonista. É uma jornada visual para a depressão, o que era difícil de colocar no guião e só progressivamente fomos ajustando. Foi muito complicado, porque se a nossa protagonista deprimida se deitasse na cama mais vezes do que o público estaria disposto a ver, todo o filme poderia ruir. Era muito complicado mostrar às pessoas a evolução da depressão que esta mulher está a viver, algo que consome o seu raciocínio.

VF: Se alguém durante a exibição do filme dissesse que a personagem da mulher deprimida a estava a enervar, então ficávamos satisfeitos, pois é isso que acontece na realidade. Para uma pessoa que não está deprimida, observar uma que está é muito complicado. Achamos que é fácil elas se animarem, saírem da cama, mexerem-se e “funcionarem”. Mas para quem sofre de depressão, isso não é nada fácil.

SF: Não vemos um sintoma físico, por isso desvalorizamos, achamos que é apenas uma manifestação de preguiça. Claro que se és diagnosticado com depressão, sabes disso, mas há muita gente que tem depressão e não sabe que tem, não sabe que aquela falta de energia é um sintoma de uma doença. E olhamos para elas sem as compreender, dizendo que são preguiçosas, que precisam de se mexer e ir trabalhar. Essa incompreensão ainda existe hoje, tal como no passado. A nossa sociedade capitalista coloca tanta pressão no trabalho e essas pessoas ainda são vistas mal como o eram no passado. 

VF: Só queria acrescentar que o título do filme, “The Devils Bath”, era uma expressão que no passado era usada para a melancolia. Acho que reflete bem o inferno interno que estas pessoas atravessam.

Existe desde os vossos primeiros filmes uma atenção especial à psicologia das personagens. É isso que vos fascina?

O que nos interessa são as pessoas. E não é uma coisa má dois realizadores se interessarem pelas pessoas. (risos)

VF: Interessa-nos muito as coisas escondidas. E como se não falares abertamente delas, essas coisas podem criar tragédias. Isto é aquilo que de alguma maneira unifica os três filmes que fizemos até agora. E, além do que escondem, a forma como o escondem. 

Recentemente foi divulgado um estudo na Alemanha que dizia que a maioria dos homens que sofrem de depressão não sabem que têm uma doença. Acham que apenas estão a sentir-se mal…

SF: E encobrem o seu estado

Porque é ainda um tabu…

SF: Sem dúvida

VF: Interessa-nos muitos estes segredos, estas vidas internas escondidas

SF: Sinto que fazer filmes sobre isto pode ajudar a sociedade a discutir como melhorar as coisas. Pode ajudar a não estigmatizar essas pessoas, ajudando-as a dizerem com maior abertura que não se sentem bem.

Existem uma série de detalhes que presumo que vêm da investigação daqueles tempos, como aquela “cura” pelo cabelo no cimo das costas para permitir que o mal saia do corpo, ou a “mulher sem cabeça” prostrada no cimo de uma cascata. Como trabalham essas cenas e as escolhem para estar no filme?

SF: Sabíamos que queríamos contar uma história sobre depressão e existem diferentes coisas, como cineasta, que podes fazer para levar isso ao grande ecrã. Primeiro é a tal investigação espiritual dos detalhes daqueles tempos. A cura que vemos pelo cabelo numa abertura da pele no cimo das costas era algo que eles faziam naqueles tempos. A melancolia numa pessoa era vista como um veneno que estava no corpo e tinha de sair. Por isso infecta-se uma ferida e acreditavam que o mal ia sair. Era uma terapia tão absurda que tínhamos de a incluir no filme. 

Outra coisa que fizemos foi estudar bem onde queríamos que o filme fosse filmado. E escolhemos um local – a apenas 10 minutos de onde filmámos o ‘Goodbye Mommy’ – que apesar de ter as paisagens circundantes muito belas, funciona como um buraco negro (…) Tal como a casa. Aquele espaço era para nós um equivalente visual para o estado de depressão’

VF: Quanto à mulher no cimo da cascata, isso leva-nos sempre à razão dela estar ali. O que fez? Como foi ali parar? As execuções naquele tempo eram como festas nas aldeias. Por isso, quando a protagonista olha para essa mulher, conecta-se a ela. E temos ainda os posters, que explicavam os crimes que as pessoas tinham cometido apenas por desenhos, porque a maioria não sabia ler. As execuções eram festas…

The Devil’s Bath

E o beber o sangue dos mortos era também comum?

SF: Sim. O sangue dos executados era considerado um remédio, imagine-se, contra a depressão…

As casas dos vossos filmes são também sempre muito peculiares e conectadas ao espírito dos vossos filmes…

VF: Sim, é verdade (risos). 

SF: As casas dizem muito sobre as pessoas que vivem nelas e sentem-se sempre como extensões dessas mesmas pessoas. No “Goodnight Mommy” a casa era uma extensão da mãe. Não somos muito fãs de explicar tudo através de diálogos, então usamos formas visuais para o fazer, como a casa, para contar como o seu dono é. No “The Lodge” foi igual, a casa é a personagem e as outras pessoas têm de viver nas suas presenças o tempo todo sem conseguir escapar. No “The Devil’s Bath” a casa é uma continuidade da depressão.

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