Sábado, 27 Abril

“Paloma”, uma crónica da afirmação identitária da população trans

"Paloma" estreou nos cinemas nacionais a 14 de março

Depois de um fervoroso aplauso alemão na sua passagem pelo 39º Festival de Munique, em junho, Paloma – o novo exemplar do sempre inquieto cinema de Pernambuco, Nordeste do Brasil – saiu do Festival do Rio com o troféu mais cobiçado da Première Brasil: o Redentor de Melhor Filme. O filme ganhou ainda a láurea de Melhor Atriz – dada à arte-educadora, encenadora teatral, poeta e performer Kika Sena – e o Prémio Félix, uma honraria Queer, de Melhor Filme Brasileiro. Comovente, a longa-metragem de Marcelo Gomes é uma crónica da afirmação identitária da população trans, ambientada no agreste de Pernambuco, avessa ao preconceito.

Em 2005, Gomes brilhou nas Un Certain Regard de Cannes com Cinema, Aspirinas e Urubus”; quatro anos depois, passou por Veneza com Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, assinado juntamente pelo cearense Karim Aïnouz; e, em 2017, concorreu ao Urso de Ouro da Berlinale com Joaquim. Agora é a vez de encarar a Mostra de São Paulo, que começa esta quinta – onde passa nos dias 25 e 27, no CineMarquise –  apoiado numa reflexão contra a intolerância e no talento de Kika. Ela vive Paloma, uma mulher trans que trabalha como agricultora, colhendo mamões. O seu maior sonho é casar-se na igreja, com o namorado Zé (Ridson Reis). Eles já vivem juntos e criam uma filha de 7 anos chamada Jenifer (Anita de Souza Macedo). O padre, porém, recusa o pedido para deixá-la subir ao altar vestida de noiva. Só que Paloma não vai desistir de realizar o seu sonho. Produzido pela Carnaval Filmes, em coprodução com a portuguesa Ukbar, o filme será lançado no circuito brasileiro pela Pandora Filmes. Na entrevista a seguir, o realizador faz um balanço da violência contra quem desafia os códigos heteronormativos.

Como se imprime delicadeza – como você imprimiu – no retrato de um mundo tão oprimido? O que você encontra em Paloma que te leva a um retrato tão doce da resiliência?

O que me impressionou na história, desde o início, é que Paloma, nesse desejo de casar num ritual clássico da igreja católica, estava, na verdade, querendo uma aceitação litúrgica para o casamento dela. O reconhecimento da liturgia para o seu amor. Nesse ato, ela constrói algo revolucionário. Então, fiquei pensando que existia, ao mesmo tempo, ingenuidade e, também, algo muito verdadeiro, legitimo. Queria unir esse sentimento de legitimidade com uma certa ingenuidade. A partir daí construí a Paloma. Acho que ela é muito prima da Iracema, da literatura.

Como se deu a construção do roteiro e o que procurou na realidade para criar a figura vivida por Kika Sena?

O roteiro foi construído a partir de muitas leituras sobre o tema. Depois, por uma coincidência, fui realizar outro filme no Agreste, que se chama Estou Me Guardando Pra Quando o Carnaval Chegar (exibido na Berlinale de 2019). Nesse período que fiquei lá, conheci muitas mulheres trans que viviam uma realidade muito parecida com a da Paloma, que estava a escrever. Então, elas foram muito importantes também para o desenvolvimento da personagem vivida pela Kika Sena. Esse encontro com essa realidade dessas mulheres trans foi muito importante para a construção do roteiro. Depois, vem a Kika. Ela me ajudou muito nessa construção. Trouxe referências muito importantes. O filme é tudo isso: a Kika, são essas mulheres que conheci, é o roteiro, é o desejo de construir essa personagem com esse sentimento de legitimidade e de uma certa ingenuidade muito esperançosa. O nosso educador pernambucano, Paulo Freire, diz que ‘num país como o Brasil, ter esperança é um ato revolucionário’, e eu acho que está aí a ideia da nossa personagem. Ela sofre violência, preconceito e rejeição, mas nada abala a fé dela. A fé a leva a ter esperança em si e na própria vida.

Fala-se de Paloma como parte de uma Primavera Pernambucana. Como você avalia a atual situação do cinema do seu estado em relação a leis, a fomentos?

Fico muito feliz em dividir espaço na Première Brasil do Rio com dois outros filmes pernambucanos: o Paterno“, do Marcelo Lordello, e o Propriedade, do Daniel Bandeira. Filmes super importantes, super necessários, contundentes e sigo feliz que esse processo de produção cinematográfica em Pernambuco não parou. Ele continua já faz 20 anos, sempre produzindo filmes curiosos e instigantes. Isso é resultado de uma política cultural, persistente que virou lei e não mudou com o governo. Isso é muito importante. Pernambuco fez algo inédito no Brasil.

Como corre, em paralelo, a carreira do teu filme sobre a prosa do Milton Hatoum, o “Relato de Um Certo Oriente”? Está finalizada a montagem?

Está em processo de montagem, muito no início, mas espero que esteja pronto no ano que vem.

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