Quinta-feira, 2 Maio

Mahamat-Saleh Haroun rompe com o determinismo em “Lingui”

Aos 61 anos, envolvido na captação de recursos, junto a fontes de fomento na França, para um novo projeto de ficção, Mahamat-Saleh Haroun acompanha com olhos paternos de orgulhos a travessia mundo adentro de um filho que fala sobre mães, sobre as angústias da maternidade e sobre as potências do feminino: “Lingui – Os Laços do Sagrado”. 

Prestes a estrear nas salas portuguesas (12 maio), enquanto no Brasil está disponível na MUBI, o realizador chadiano, responsável por filmes como “O Homem Que Grita” (Prémio do Júri em Cannes, em 2010), “Abouna” (2002) e “Hissein Habré, Une Tragédie Tchadienne” (2016), traz até nós a batalha de uma mãe solteira muçulmana, Amina (Achouackh Abakar Souleymane), para sustentar a sua filha adolescente, Maria (Rihane Khalil Alio), de 15 anos. Quando Amina descobre que Maria engravidou e está decidida a abortar, as duas entram num choque, que passa por conflitos de cultura, tradição, fé e amor – o materno e o filial. Mas, nesse processo, mãe e filha estreitam uma conexão mais forte do que qualquer outra que já viveram.

Em Cannes, o C7nema trocou ideias com Haroun, que durante anos foi o único realizador de ficções do Chade. Voltámos a falar com ele durante no Rendez-vous Avec Le Cinéma Français, em janeiro. Nestas entrevistas, a tónica de suas palavras é a inclusão.  

Existe um conceito de cinema africano que rege “Lingui”? De que forma?

A África tem muitas terras, portanto, há muitos cinemas. Não estou aqui me reportando às diásporas, pois o meu novo filme não fala sobre elas. Fala da travessia de duas mulheres que se cruzam num choque de culturas. E não estou interessado que esse choque resvale na tradição do melodrama, embora eu esbarre nele conscientemente. Existe um saber no folhetim, mas o que me interessa não são os seus códigos e as suas cartilhas. Estou interessado na condição de vivência de pessoas que se libertam dessas conjecturas cartesianas que o folhetim nos apresentou como sendo regras que trafegam livres no exercício de escolhas individuais. Falo de coragem. Não existe um modelo de África. Da mesma forma como não existe um modelo de coragem.

Lingui – Os Laços do Sagrado

Como se escapam às convenções de um género tão potente como o melodrama?

Observando. Talvez por isso gravite entre os documentários e as ficções. Faço um cinema com atores negros, sejam profissionais ou não, que visita o real sob tintas poéticas de maior ou menor esperança, preocupado em falar da diáspora africana e falar do dilema dos refugiados. Escolhi as atrizes de “Lingui” pelas audácia com que se reportavam às provocações que apresentei. Eu persigo assuntos dolorosos do nosso universo para provar aos africanos da minha pátria que podemos fazer cinema com liberdade, valorizando a nossa identidade cultural. Existem muitas histórias no Chade  para serem contadas, como factos ou como fábulas. Sei de algumas, invento outras. Mas preciso de mais pessoas para fazer isso comigo.

Os seus filmes anteriores, como o “Homem que Grita” e “Gris Gris”, focam-se nos homens, mas agora lança um olhar sobre as mulheres. Em termos de método, como estudou esse mundo? O quão diferente foi a investigação e construção deste mundo?

Há muito que trabalho sobre a violência na sociedade chadiana, notavelmente as consequências da guerra civil. E a guerra é feita pelos homens. Daí veio a minha urgência em fazer histórias sobre homens. Mas agora falo daqueles que não falei, as mulheres, que são dominadas e privadas de direitos pelos homens, tendo de encontrar soluções para sobreviver. (…) A ideia principal no meu filme é que a mãe pensa que existe um determinismo, uma repetição da sua história na filha. Ela mesma engravidou aos 15 anos. A única diferença é que, ao contrário da filha, ela estava apaixonada por um homem, que depois a abandonaria. Ela não quer que a filha siga a sua rota. Ela encontrou na religião uma forma de salvação para a sua condição. O que ela pretende é que a filha quebre com o determinismo, criando novas possibilidades de vida diferentes às que teve.

Se pensarmos, temos dois níveis: a mãe apenas quer dar um destino diferente à filha, quebrando uma predestinação. Mas existe também o nível pessoal, pois ao salvar a filha, salva-se a si mesma.

De que maneira as mulheres de “Lingui” representam a tradição e a ruptura?

É um filme sobre a audácia da juventude, na atitude de Maria em querer abortar e fazer a sua mãe aceitar a sua forma de ser e de ser responsável pelo seu próprio corpo. Entro de alguma forma na rota do melodrama, mas não me limito a ele. Tenho um estudo cultural para fazer que vai além do folhetim.

Existe aqui uma personagem que lida com várias questões que vão contra essa tradição. Uma personagem que tanto trata dos abortos clandestinos, como o do escapar das mulheres à excisão.

Sim, essa mulher  tem consciência que tem um papel importante além daquele estabelecido pela sociedade, na qual tem de trabalhar para viver. É uma espécie de sacerdócio, em que ela ajuda as mulheres que não querem prosseguir com as suas gravidezes e também as que querem escapar à excisão. 

Muitos têm definido o seu filme como feminista. Como lida com essa catalogação?

A minha intenção à partida não era fazer um filme feminista. Queria apenas que as pessoas ouvissem as vozes destas mulheres que são heroínas do quotidiano. Mulheres que lutam contra grandes dificuldades e que, passo a passo, dia a dia, tentam conquistar um pequeno território de emancipação. Tentei ser o mais justo possível e tocar os temas corretos de forma aberta. Talvez junte algumas das reivindicações feministas e não tenho problema nenhum nisso. Agrada-me essa ideia de darem ao filme esse rótulo, mas não sinto a legitimidade de falar em nome de qualquer mulher.

Lingui – Os Laços do Sagrado

Falando da estética e do uso de cores carregadas no “Lingui”, como o trabalhou em termos visuais?

A principal ideia que me guiou era aumentar a beleza e a luz da cidade, que muitas vezes é escura e sombria. Tentei assim captar a beleza e poesia do espaço. Por exemplo, à noite não existe iluminação, mas ainda assim as luzes dos carros e motas traz essa beleza e poesia. Esse foi o meu principal objetivo. Num outro nível, através das cores e luzes quis também chegar a algumas abstrações. Fiz como se tivesse um tempo (musical) durante a montagem, um momento em que deixamos o storytelling para entrar numa criação cinematográfica minimalista utilizando as suas ferramentas: as cores, a luz e o som. Fazer o cinema falar e deixar as emoções fluir de forma sensorial.

Um dos seus filmes, “Une saison en France” (2017), reflete a questão da xenofobia na Europa, a partir do quotidiano dos imigrantes. Como foi a sua vivência e como vem sendo a sua relação com a França para a relação de coprodução dos seus filmes?

Cheguei à França na década de 1980 e iniciei a minha produção nos anos 1990. Era uma época em que não havia a sombra da extrema direita que existe hoje. Era um clima caloroso. Eu tive que deixar o Chade, fugindo dos conflitos armados, mas acabei por encontrar um lugar de acolhimento em Paris. Nas andanças que fiz, soube de dolorosas histórias de conterrâneos meus que tiveram que viajaram como refugiados para a Europa. Um deles, em busca de asilo político em solo europeu, tentou o suicídio para chamar a atenção da imprensa. Não morreu, mas ficou muito ferido. Foi uma autoimolação em praça pública. Esse gesto não saiu de mim e fez-me pensar sobre a dimensão do espetáculo e da dor dos que saem. Mas é importante também pensar na dor dos que ficam.

Chegou a ser o Ministro da Cultura, Desenvolvimento do Turismo e Artesanato no Chade por um curto período de tempo (fevereiro de 2017 a fevereiro de 2018). Como foi essa experiência?

Fui durante um ano, mas demiti-me porque tenho plena consciência que sou melhor a fazer filmes que política.(risos)

Mas o seu filme é político…

Tudo é político, por isso às vezes fico surpreendido de algumas pessoas ficarem chocadas por ver isso no meu filme. Estamos a falar de vida nas cidades e é impossível escapar a isso.

Acha assim que o cinema é uma forma melhor de fazer política que a própria política?

O cinema, como a literatura ou pintura, está aberto a toda a gente. Não é dogmático como a política. O objetivo do cinema e das artes é atingir e provocar as emoções, os pensamentos e as reflexões nos seres humanos. A política, per se, tem um propósito diferente, que começa com o chegar ao poder. E depois sim, mudar as coisas. E se não mudas o que queres mudar, então agarras-te ao poder e recusas deixá-lo.

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