Quinta-feira, 2 Maio

Compartimento N. 6: entre Moscovo e Murmansk, a mais pura conexão

Nos cinemas a 8 de dezembro

Depois de surpreender em 2017 com “O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki”, onde acompanhava a história de um pugilista que luta para sobreviver no difícil e complicado ano de 1962, o finlandês Juho Kuosmanen retorna às salas de cinema nacionais com “Compartimento N. 6”, vencedor do Grande Prémio do Júri do último Festival de Cannes.

Do preto e branco leve dos 16 mm, que deram a “…Olli Mäki ” um tom de noticiário, para um pesado registo em 35 mm, que progressivamente vai ganhando leveza à medida em que a conexão aumenta entre os dois protagonistas, Kuosmanen cria mais um filme onde demonstra a destreza e maturidade do seu cinema, repleto de humanidade, autodescoberta e conexão.

Juho Kuosmanen e a atriz Seidi Haarla

É isso que acontece em “Compartimento N. 6”, entre Moscovo e Murmansk, quando Laura (Seidi Haarla), uma estudante finlandesa de arqueologia, divide a sua cabine de segunda classe num comboio com o russo Ljoha (Yuriy Borisov). À partida estamos perante dois seres de mundos e vivências distintas, mas que se vão despir das catalogações linguísticas e culturais para encontrar uma verdadeira ligação nessa viagem. É esta uma história de amor? Sim, mas bem longe do romance ou do final feliz, como nos explicou o cineasta numa entrevista em Cannes em julho passado. 

Uma das grandes dúvidas que os espectadores tiveram sobre o filme era em que época específica ele se desenrolava. Pode ajudar nesse esclarecimento?

Não existe uma data específica em que a ação decorre e queria evitar isso. Bem, adoro comboios e coloco-os sempre em cena quando posso, como o fiz no “O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki”, que se passava nos anos 60. Curiosamente os comboios usados nas décadas de 60 e na de 80 eram os mesmos, só mais recentemente foram alterados. Por isso, posso dizer que a ação do “Compartimento N. 6” decorre…antes dos smartphones (risos). 

O filme é inspirado num livro finlandês e a ação nele decorre ainda na URSS, por isso podemos dizer que é nos finais da década de 1980. Inicialmente, a nossa ideia era também essa, mas por várias razões decidimos aproximar a ação dos nossos tempos. Porém, não queria de todo fazer uma obra contemporânea, porque acho que nesta era de smartphones e internet a forma como comunicamos nos comboios é diferente. Naqueles tempos não podíamos nos isolar num espaço virtual. Hoje em dia, em metade do tempo de uma viagem de comboio estamos nesses espaços virtuais, centrados nisso.

Sim, podemos até questionar se a ação se desenrolasse hoje em dia, será que eles iriam comunicar e criar uma conexão?

Bem, no início a mulher tenta escapar do colega de compartimento refugiando-se no seu leitor de cassetes, mas nesses tempos, as pessoas precisavam e interagiam mais umas com as outras.

E como se processou a criação de toda aquela atmosfera? 

Demos uma grande liberdade na criação do ambiente e não queríamos situar as coisas nos anos 80. Não tenho propriamente citações preferidas em relação ao Cinema, mas pactuo com a ideia do “mentir o mínimo possível” nas filmagens. Quando procuramos as locações para as filmagens pensámos que se a ação se desenrolasse nos anos 80, tínhamos de mudar muita coisa. 

Por isso, no final dos anos 90 e início de 2000 seria o ideal para “não mentir” tanto. Claro que existiram coisas que fizemos para dar esse olhar do passado, mas havia também uma busca pelo real. Por exemplo, a casa da personagem da idosa é mesmo dela. É um espaço real. 

E quando percebeu que tinha perante os seus olhos o filme?

Quando vi os atores nas audições. Senti que o filme estava ali. Há tanta autenticidade neles que eles levam-te a uma sensação de profunda realidade, embora este projeto seja totalmente uma ficção.

Sendo o filme difícil de categorizar ou resumir, podemos dizer que se trata de uma história de amor?

Sim, de certa maneira sim. Porém, normalmente, quando falas em história de amor isso traz uma ideia de romance e final feliz em que vivem felizes para sempre. Não queria isso nem que as pessoas desejassem que eles ficassem juntos no fim. Creio que é mais sobre a conexão entre duas almas, dois seres humanos. Quando falamos também em histórias de amor falamos normalmente de compromisso e sexo. Esta é uma história de amor diferente de almas que se ligam e é também sobre liberdade e aceitação. Por exemplo, na cena inicial no apartamento, na festa, com aqueles intelectuais, ela tenta integrar-se e tem dificuldade em aceitar o amor que a Irina lhe dá. No caso da ligação dela com o Ljoha, esta é pura. Ela não tem de ser outra pessoa além daquela que já é. A jornada dela neste filme é também de aceitação a si própria.

E era importante para si aproximar duas pessoas de locais e culturas diferentes, neste caso Rússia e Finlândia?

A maneira de eu ver as coisas é que temos linguagens diferentes que nos afastam, diferentes papéis atribuídos culturalmente. Ela é finlandesa e ele russo, mas no final isso já não interessa nada. Eles estão livres desses papéis.

Como um finlandês que filmava na Rússia, estava preocupado com que tipo de filme seria este no final das contas, mas a pessoa que me ajudou nos diálogos em russo disse que não sentiu que o filme fosse feito por um estrangeiro. Isso para mim foi um grande elogio, mas acho que isso teve a ver com o facto de eu os colocar como seres humanos, e não apenas um russo e uma finlandesa, logo desde o início. 

“Compartimento N. 6”

E quando começou a adaptar o livro, o quão próximo queria estar dele?

Não segui o livro, pois gosto de ser livre. As filmagens são um processo vivo em constante mudança, seja no esboço do guião, na versão final do roteiro ou até durante as filmagens e processo de montagem. Por isso, não quis me agarrar ao livro. Falei com a autora sobre isso e ela deixou-me à vontade. São coisas diferentes: O livro é dela, o filme é meu. 

Falando do trabalho estético neste “Compartimento N.6”, o filme é  relativamente diferente do anterior. Como construiu este visual distinto em relação ao “O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki”?

Trabalho com o mesmo diretor de fotografia, o Jani-Petteri Passi, há 12 anos e este é um filme muito diferente do anterior. Ainda  assim há muitas similaridades entre eles. Mesmo que o O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki” “fosse a preto e branco e a ação decorresse nos anos 60, tentamos neste igualmente usar planos longos que dão uma atmosfera própria. 

Em termos dessa atmosfera, o “Compartimento N. 6” é mais pesado, aborda questões mais profundas. Claro que isso também afetou a sua forma visual. Filmamos em 35 mm com uma câmara mais pesada. No anterior queríamos uma câmara de 16mm porque era mais  leve e dava uma espécie de forma de noticiário. Aqui desejávamos sentir mais peso, como o do comboio em que viajamos. A própria imagem parece mais grossa e pesada no início do filme e começa a tornar-se mais leve a caminho do fim.

A maneira como eu e o Jani-Petteri Passi trabalhamos é criar a mise-en-scène a partir do ponto de vista da câmara, observando como os atores se movem. Não temos storyboards, construímos as cenas assim. Normalmente, preparo a mise-en-scène com os atores e só depois decido onde coloco a câmara. Mas claro, num espaço tão pequeno como o compartimento de uma carruagem, o nosso trabalho com os atores foi mais o de precisar a sua posição, uns centímetros para aqui ou ali. Normalmente gosto de dar mais liberdade, mas aqui era complicado.

E a inclusão daquele tema “Voyage, Voyage” dos Desireless, que ouvimos pelo menos 3 vezes no filme e mais uma nos créditos? Como surgiu esse tema?

Foi quando fui a Tallinn, ao Instituto de Cinema da Estónia, à procura de financiamento. No táxi para lá, juntamente  com o Jani, a música começou a tocar na rádio e eu disse que ela tinha de estar no filme. Gosto muito desse tema pois ao mesmo tempo traz uma melancolia e o sentimento de ser de fora. Quando vais a sítios distantes manténs sempre em ti o ser um estranho, alguém de fora. 

No “Compartimento No 6” existe solidão e melancolia, mas não queria fazer um filme triste e negro. Queria abordar estes assuntos com algum calor, humor e um bom ritmo. Esta música combinava  melancolia e um bom beat pop

“Compartimento N. 6”

E por falar em melancolia, agora – em tempos de pandemia – quando vemos estas imagens no comboio, que já é de si um espaço confinado, soa estranho não ver as máscaras. Um filme ganhou uma nova dimensão também depois dos tempos que vivemos…

 Sim e uma das coisas que ressoou bastante em mim é olhar para aquela cena em que ele diz a ela no filme para falar da Moscovo que perdeu quando a câmara de vídeo foi roubada. Nós antigamente visitamos-nos uns aos outros, bebiamos, falávamos, íamos a museus, ria-mos. Hoje em dia tudo isso, como era no passado, foi-se. Quando filmamos não existia ainda pandemia, mas depois dela o filme ganhou também uma nova dimensão. 

E falando dos tempos idos, nos seus dois filmes existe uma sensação de nostalgia. No  “O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Mäki” havia uma dimensão de cinema clássico e no “Compartimento No 6” temos igualmente isso, nem que seja os estranhos que se conhecem num comboio, etc (“Strangers in The Train”, por exemplo). O que retira da história do cinema para o seu cinema e quão nostálgico é?

Não sei quão nostálgico sou, mas vejo muitos filmes antigos. Não tento fazer filmes clássicos ou copiá-los, mas todos os filmes que vês ficam em ti e afetam a forma como vês o mundo e fazes cinema. Mas acho que sim, sou nostálgico, mas tento curar-me disso (risos) pois para mim a nostalgia é sentir falta de todos os sítios onde já fui. Não acho que antigamente as coisas eram melhores que agora, mas as emoções que partilho têm sempre uma ligação à perda de coisas e lugares. 

E já sabe o que o vai fazer a seguir? Terá também comboios? (risos)

(risos)…   Barcos. Agora barcos (risos)… Tenho diferentes projetos em que estou a trabalhar, mas não sei qual será o próximo. Na verdade, comecei este projeto e filmei o “…Olli Mäki” primeiro. Esta é uma ideia mais antiga que essa. (…) Mas uma das histórias que estou a preparar é uma curta de ficção científica silenciosa. É sobre uma pessoa destruída pela realidade que constrói um foguetão e viaja além dessa realidade (risos).  

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