Quinta-feira, 2 Maio

Do Brasil a Portugal, Laís Bodanzky faz de “A viagem de Pedro” um ‘documentário de época’

Um dos filmes brasileiros mais esperados dos últimos anos, por conta do prestígio que a sua realizadora alcançou interna e internacionalmente com “Como Nossos Pais” (2017), “A Viagem de Pedro”, de Laís Bodanzky, ganhou luz na 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Agora chega ao IndieLisboa, antecedendo a sua estreia nas salas de cinema nacionais em maio.

O filme da realizadora de “Bicho de 7 Cabeças” (2000) e de “Chega de Saudade” (2007) passa-se em 1831, com foco na travessia pelo Atlântico de uma fragata inglesa rumo à Europa. Nela está, Pedro, o ex-imperador do Brasil, vivido por Cauã Reymond. Pedro busca forças físicas e emocionais para enfrentar o irmão, que usurpou o seu reino em Portugal. Mas, ao se perceber doente e inseguro, o antigo líder dos brasileiros entra na embarcação em busca de um lugar, de uma pátria, de si mesmo.

Nesta entrevista, Laís Bodanzky explica ao C7nema o recorte estético que adotou para desbravar a História.

Qual é o maior desafio de usar a História como matéria para uma narrativa cinematográfica e o quanto, nesse trabalho com a memória do Brasil, você teve liberdade para recriar o passado como espelho do nosso presente?

Tive total liberdade, desde o início, quando recebi o convite do Cauã Reymond e do Mário Canivello, para contar história de D. Pedro, com o desafio que eu trouxesse o meu olhar sobre essa personagem. O convite era para que fizesse um trabalho em conjunto, mas tendo-me como diretora e autora. Na verdade, foi por isso que aceitei também, por ter essa liberdade. O meu último filme foi o “Como os Nossos Pais”, que fala sobre a mulher hoje na sociedade, sobre a opressão de género invisível que temos na família, no trabalho e na rotina. É um olhar sobre essa mulher contemporânea, buscando se libertar de um patriarcado. Lembro-me que, logo após lançar o filme, o Cauã assistiu e falou: “Depois que você fez esse filme, que recorte você vai dar para a história do D. Pedro I? Depois que você faz um filme como esse, não pode passar a mão na cabeça desse personagem. De certa forma, o filme precisa dialogar com o anterior, mesmo sendo de época”. Esse foi o meu desafio. Pegar um facto histórico, um personagem muito importante e para o Brasil e para Portugal e trazer um olhar crítico, meu, enquanto mulher. Ele é um dos maiores representantes dessa estrutura patriarcal da sociedade, um opressor de todas as mulheres ao seu redor, o que, para aquela época, parecia o padrão normal, apesar dele até extrapolar o que era considerado padrão. Eu escolhi, como o meu desafio, fazer uma cinebiografia, trazendo um olhar para a personagem em que me interessasse mais olhar para dentro dele do que para os factos e para suas realizações. Talvez tenha sido isso o que me levou para o recorte desse filme. É um filme que se passa no Oceano Atlântico, no momento no qual ele sai do Brasil expulso, mas ainda não chegou na Europa. É o momento dessa viagem de barco em que ele fica obrigatoriamente com os seus botões, sozinho, tendo que enfrentar os seus próprios demónios, angústias e medos.

O seu cinema perpassa sempre a dimensão familiar. Mesmo o “Chega de Saudade” (2007), que fala sobre um salão de dança, mostra aquele núcleo de gafieira (nome usado para danceterias no Brasil) como uma família. De que maneira essa questão tão recorrente ao seu cinema floresce em um mergulho no universo de corte, na Coroa brasileira?

De facto, o meu cinema é focado no universo interior das personagens. Quando vejo, já estou vasculhando o inconsciente delas. Não foi diferente com “A Viagem de Pedro”, mesmo sendo um filme de época e um personagem tão conhecido. Eu diria até que o facto de Pedro I ser conhecido é também um questionamento sobre que pessoa é essa que todos conhecem. Quem era esse homem na intimidade? Ninguém na intimidade, por mais poderoso que seja, é absolutamente perfeito e feliz. Não difere para essa personagem do filme. O título do filme era apenas “Pedro” e, depois, tornou-se “A Viagem de Pedro”. Mudou justamente pelo meu desejo de me aproximar dessa pessoa que, por acaso (ou talvez não por acaso), era Imperador do Brasil. Digo que “não por acaso” porque ele tinha uma personalidade forte e era um homem impetuoso, que tinha como seu herói o próprio Napoleão. O Brasil é um país continental muito pela personalidade de D. Pedro I. Era o que ele queria e desejava. Ele era capaz de qualquer coisa para tingir seu objetivo.

 Qual foi a importância prática da produtora O Som e a Fúria para a equação financeira e, mesmo, criativa do filme, a partir de uma conexão com Portugal?

O nosso braço em Portugal é a produtora O Som e a Fúria. Luís Urbano e Sandro Aguilar foram fundamentais nessa coprodução e acompanhamento, desde o desenvolvimento do roteiro, da pesquisa, das filmagens e da montagem. Eles participaram do processo criativo como um todo. Este filme é uma coprodução Brasil e Portugal. Brasil é Buriti Filmes e a Biônica Filmes, os produtores são Cauã Reymond e Mário Canivello, os sócios da Bionica, Luís Urbano e eu. O filme só foi possível por ser uma coprodução com Portugal que trouxe todo um laço da história do passado de D. Pedro I, e do seu futuro, para o filme. Pedro retorna para Portugal para guerrear com o irmão. Ele volta para essa infância, na saída da família real em direção ao Brasil, como ele também projeta seu futuro encontro com seu irmão, que usurpou o reino de Portugal dele. E ele vai justamente para coroar sua filha no lugar de seu irmão.

Ter Portugal como cenário e universo criativo era fundamental. Uma coprodução era necessária. Foi a primeira vez que fiz um filme em Portugal. Boa parte do elenco é portuguesa e temos uma atriz alemã. O filme se passa no barco e o comandante deste barco é inglês e o ator, irlandês. O contra-almirante é o ator luso-guineense Welket Bungué. Os atores portugueses que estão no filme são Victoria Guerra (Amélia), Luisa Cruz (Carlota Joaquina), João Lagarto (D. João), mais um elenco que acompanha. Principalmente, esse que é o objetivo da viagem, que é D. Miguel, vivido pelo Isac Graça. Todo o figurino foi, na sua maior parte, produzido em Portugal e levado ao Brasil. O trabalho de arte teve esse mix de equipa portuguesa com a equipa brasileira, algo muito importante para trazer verdade para a cena. O diretor de fotografia (Pedro J. Márquez) gosta sempre de lembrar que nós fizemos um documentário de época, que, para ser feito, necessitou de muita pesquisa e de uma equipa competente para trazer os objetos certos e reproduzir a arquitetura. O trabalho de elenco também foi essencial para que acreditássemos que estávamos ali, no barco, vivendo com eles aquele momento de 200 anos.

De que maneira o seu Pedro I reflete algum ideal possível de heroísmo de um Brasil que se torna independente?

O filme não constrói um herói; ele desfigura, desfaz essa estátua do herói. Questiona que herói é esse que, para virar essa estátua, oprimiu tanta gente, em vários momentos de sua vida e de várias formas. Pessoas próximas ou nem tão próximas. Faz sentido? Qual o sentido? Para ser admirado por quem? Quem admira isso? O que estamos admirando quando admiramos uma estátua que diz ser um herói? O filme questiona isso.

[Entrevista originalmente publicada em outubro de 2021.

Notícias