Sexta-feira, 3 Maio

«Les Epouvantails» por Jorge Pereira

O veterano realizador tunisino Nouri Bouzid nunca escolheu temas fáceis para os seus filmes e já distam 33 anos desde que rompeu tabus e apresentou na Un Certain Regard em Cannes um drama sobre a homossexualidade (Man of Ashes, 1986), que lhe deu – obviamente no seu país – muitas dores de cabeça.

Agora e na secção Scofini em Veneza, Bouzid apresentou Les Epouvantails (literalmente ‘Os Espantalhos’), filme que rompe com o silêncio sobre as ‘esposas do Daesh’, contando a história de duas mulheres que após passarem uma temporada enclausuradas na Síria ao serviço do autoproclamado estado islâmico voltam à Tunísia com as suas marcas físicas e psicológicas, tendo de se integrar numa sociedade patriarcal extrema, mesmo após a famosa Primavera Árabe.

É um filme sensível sobre mulheres que viveram num perfeito estado de cativeiro e que continuam – já longe do local – enclausuradas entre memórias, traumas, preconceitos e discriminações. De um lado temos Zina (Nour Hajri), longe de ser uma vítima angelical que foi arrastada para tudo. Na verdade, ela seguiu o amor, acabou vendida e entregue a um destino inglório de quem era apenas uma jovem que queria um pouco de rebelião para a vida já obsoleta e repleta de restrições familiares e sociais. “Ao seu lado”, temos Djo (Joumene Limam), também ela uma vítima do Daesh, retida na angústia e prisioneira na sua própria mente das memórias de violações em massa e de uma insuportável violência psicológica.

Bouzid acorrenta estas mulheres de volta a uma sociedade que se diz democrática, impondo uma câmara que as persegue e as filma à flor da pele, mostrando o estado de confusão, dor e claustrofobia de vítimas que agora, para além de lutarem contra as memórias, têm de lidar com o preconceito, mostrando-se profundamente incapazes de refazer vidas ou de “regressar ao normal”, que já em si é profundamente castrador. Uma tarefa hercúlea, mesmo que a acompanha-las tenhamos a mãe extremosa de Zidi e uma advogada em busca da justiça.

No final, temos um trabalho que não se perde em manipulações, sensacionalismos, lugares comuns e outros estereótipos do cinema do norte de África, e que até pisca – a determinado momento – o olho à Nouvelle Vague quando coloca como único confidente confiável para Zidi, um jovem homossexual (Mehdi Hajri) com quem ela se abre novamente ao mundo, sorri e volta a viver por breves instantes. Tudo passageiro e ligeiro, pois o caminho para fugir ao passado e principalmente à desilusão amorosa é longo e provavelmente intangível.

“Como vivias com o Daesh? Como uma morta“, responde a certo momento uma delas. E mesmo vivas na nova sociedade tunisina, estas mulheres há muito que feneceram nas suas mentes.


Jorge Pereira

 

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