Todas as cidades deviam ter mar. Ou o som do mar devia ser ouvido em todos os lugares”.

Tenho forte atração pelo mar e sempre penso no mar como uma das coisas mais democráticas que existem.
O mar acolhe tudo e a todos, não importa se és rico ou pobre, de qualquer etnia, crença e sexualidade; ele lava o nosso corpo e leva embora as nossas impurezas; nos dá a ver o horizonte, nos redime do cansaço físico e mental, nos cura e vivifica. E mesmo quando as suas ondas bravejam, continua a nos atrair com a sua ira ou a calmaria que depois se instala.

A frase entre aspas é da personagem Moe de “Wet Sand/Areia Molhada” (2021), filme da realizadora Elene Naveriani. Este filme e esta fala lembrou-me outro filme ficcional, embora com enfoques diferentes: “Mulher oceano” da realizadora brasileira Djin Sganzerla, a qual constrói duas histórias, narrativas paralelas e, ao mesmo tempo, “ocultamente” cruzadas da vida de duas “mulheres oceano”. Em ambos os filmes, as personagens estão envolvidas ou rodeadas pelo mar.

Em “Areia Molhada“, ouvimos o som do mar do início ao fim, por vezes forte, por vezes quase impercetível. O mar, embora nada diga, está lá, rodeando as personagens e habitantes de uma pequena, remota e escassamente povoada vila costeira do mar negro, na Geórgia, país de origem de Naveriani.

Ao assistirem o filme, sugiro atentarem bem a primeira cena, pois ela vai revelar uma conexão com outra personagem lá bem adiante na narrativa. Na cena em questão, Eliko, interpretado por Tengo Javakhadze (imagem a seguir), um senhor de cerca 70 anos, escreve uma carta de amor e despedida para ser lida após a sua partida, para alguém que não sabemos quem é. Cerca de 10 min decorridos de filme, ficamos então a saber do seu suicídio, mas não o motivo.

Porque as pessoas se suicidam? As razões são muitas, geralmente por desespero, por não suportar a realidade.

Eliko vivia na citada aldeia a beira-mar, onde o tempo parece não fluir, onde todos se conhecem há décadas – um povo conservador e preconceituoso. Ali, tudo se passa ao redor do mar e do bar Areia Molhada, de Amnon (Gia Agumava), bar instalado em frente a praia, dando a ver e a ouvir o ruído incessante das ondas. Bar que tem uma única funcionária Feshka, amiga do seu chefe Amnon.

No vai e vem do pouco movimento da vida local é a vez de uma “forasteira” chegar.
Moe (Bebe Sesitashvili), a neta de Eliko, do homem que suicidara e que vamos descobrir que um dia fora marinheiro e nos últimos anos viveu neste lugar, que não é nomeado no filme.
Moe vivera a infância ali e só agora retorna, retorna para enterrar o avô e lamenta ter estado tanto tempo ausente. Ela vem da capital, Tbilisi. Pelo modo como se veste e age, é moderna, insubmissa e se sente deslocada. Mas ela terá que viver no ritmo da comunidade. Uma reviravolta lenta vai acontecer na sua vida e ela terá que se “adaptar” a tudo.

Amnon, o dono do bar, recebe Moe, se acolhem e se dão bem.
Sem pressa preparam juntos o velório de Eliko, afinal ela veio para isto.

O filme é cheio de situações sociais trágicas em função dos preconceitos arraigados nos seres do povoado. Um retrato de uma comunidade de pessoas ressentidas e, em sua maioria, indiferentes um ao outro.

Além das personagens, um filme se faz também com os recursos do cinema, e então destaco o trabalho primoroso da direção de fotografia criada por Agnesh Pakozdi; da direção de arte de Ketevan Nadibaidze e da montagem de Aurora Franco Vögeli; todas elas mulheres. Primor expresso nos movimentos de câmara lentos, nos planos longos, nas texturas das imagens quase táteis, nos enquadramentos bem compostos, nas cores e no equilíbrio da luz; no mobiliário e demais objetos de arte; nos planos muito bem montados sem qualquer lacuna ou fratura. Além da banda sonora íntima, subtil e cúmplice do estado sentimental das personagens.

É pela banda sonora que as personagens principais do filme deixam visíveis os seus afetos, por trás das canções que compõem as cenas, a exemplo da canção “Our Love Lies“/As nossas mentiras de amor, ou por meio dos diálogos discretos entre Ammon, Moe e Feshka, quando o corpo de Eliko está a ser preparado para ser sepultado. Ou ainda através da carta deixada por Eliko a Amnon, momento em que vamos descobrir que os dois eram um casal homossexual. O inusitado é que não há nenhuma cena em que os dois aparecem juntos, nem mesmo em flashback.

A cena em que Eliko escreve para Amnon bem no início do filme é recriada pela realizadora. E desta vez, é Amnon que está sentado a ler a carta e a saborear o vinho, ao fundo da bela música “What difference a day makes“, que o transporta ao passado vivido com seu amante e as palavras da carta que o tocam.

Se você estiver lendo esta carta é porque já estou morto. Com esta liberdade levo a mais bela memória. Perdoe-me por teres te deixado sozinho, desfrute do vinho que preparei especialmente para ti. Voltaremos a nos encontrar num lugar onde nunca precisaremos nos esconder”.

Da impossibilidade de viver em liberdade, uma relação que se tornou impossível. Eliko “opta” pelo suicídio, pela ausência eterna de quem amou e por anos compartilhou em silêncio os afetos que nunca puderam ser públicos. Assim como no cinema, no plano da realidade, infelizmente, as pessoas também se suicidam por sofrerem preconceitos.

Os dois passaram a vida inteira se encontrando as escondidas. Após a autopsia da morte de Eliko, as coisas veem a público, desmorona o mundo de Amnon frente à comunidade que o reprime “por tê-lo enganado” por décadas, pelo facto dele ser homossexual. O preconceito fala mais alto do que a convivência de uma vida inteira neste lugar onde todos se conheciam. Eles ignoram o motivo do suicídio de Eliko e o sofrimento de Amnon. Nem sequer neste momento, Ammon pode expressar publicamente a sua dor. Chegam a dizer-lhe que “a comunidade tem as suas regras”, e com violência extraem do cemitério o corpo de Eliko, atiram-no para um pântano. Moe e Feshka (Megi Kobaladze) recuperam e irão dar ao corpo outro destino. Vai ser cremado juntamente com Amnon, que vai acabar por morrer envenenado, creio, por alguém da comunidade.

Já quase no findar do filme outra surpresa, desta vez não trágica: Moe se rende aos afetos amorosos de Fleshka, relação que ela resistiu desde o primeiro dia em que se viram, quando Moe chega na aldeia. Desta vez, diferente de Eliko e Amnon, elas ousam expressar publicamente os seus desejos e encaram a discriminação dos habitantes locais. Talvez esta seja a única vez que Fleshka se sente acolhida e amada por alguém neste lugar preconceituoso.

Se eu fosse criar uma sinopse do filme, diria que é sobre um amor silencioso entre dois homens, sobre a impossibilidade de um casal gay sobreviver ileso numa vila conservadora da Geórgia. E é, principalmente, um modo de denunciar a homofobia e o preconceito social sobre as pessoas gays.


A realizadora torna universal uma história pessoal. É uma forma de apoio e grito de liberdade para àqueles que têm que sufocar a sua identidade diante de uma discriminação social impiedosa.
Nos últimos anos, basta olhar as notícias, a imprensa da Geórgia divulgou em diversos momentos a opressão dos direitos da comunidade LGBTQ+ neste país.

Na MUBI, na página do filme, há uma fala de Elene Naveriani que desejo aqui partilhar:
Todas as minhas obras são retratos de pessoas na sociedade. É assim que eu construo ou vejo o mundo à minha volta. Não há indivíduo sem relação com o mundo, directa ou indirecta”. Ela também relata que “o filme é uma homenagem aos esquecidos, uma luta contra o fanatismo, um acto de empoderamento para as novas gerações que lutam com questões relacionadas com a identidade, uma história através da qual eles possam reinventar as suas vidas no futuro”.

Esta é a sua segunda longa-metragem. Além de realizadora, ela é também artista visual. Escreveu o roteiro de “Areia Molhada” com o seu irmão Sandro Naveriani. O filme foi lançado no Festival Internacional de Cinema de Locarno e está disponível online na MUBI .

A primeira longa-metragem de Naveriani, “Am Truly a Drop of Sun on Earth/ Eu sou uma verdadeira gota de Sol na Terra” (2017), assim como “Areia Molhada“, foi igualmente aclamada pelo público e pela crítica. Este filme aborda a situação de uma mulher, April, que passa uma noite na prisão por prostituição e volta para o seu trabalho num hotel local. Lá, ela conhece Dije, um jovem imigrante nigeriano que lhe conta a história da sua vida. Ele relata que quando saiu de sua terra natal acreditava que estava indo para a Geórgia, nos EUA, mas acabou indo parar num desconhecido país europeu.

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
se-voce-estiver-a-ler-esta-carta-e-porque-ja-estou-mortoO filme é uma forma de apoio e grito de liberdade para àqueles que têm que sufocar a sua identidade diante de uma discriminação social impiedosa.