Conhecido por mapear afetos na mesma medida em que aborda temas sociais pertinentes, o japonês Hirokazu Koreeda continua a sua viagem pelo universo da identidade familiar, fugindo da tradição clássica que se agarra exclusivamente aos laços sanguíneos. “Broker” continua esse percurso, um percurso que dedica especial atenção à infância, num gesto que até é anterior a “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões” mas que acabou por ganhar força nesse filme pelo seu palmarés (venceu justamente a Palma de Ouro em Cannes), assinalando também aquela que é a segunda incursão do cineasta para fora do Japão, isto depois de já ter visitado a França com “A Verdade”.

Agora na vizinha Coreia do Sul,  Koreeda,  cineasta riquíssimo na coreografia dos gestos (veja-se aquele genial momento num teleférico), com uma atenção bem além daquela que costuma dedicar nos seus guiões aos diálogos e à própria linguagem, toma como premissa umas caixas que são deixadas a céu aberto onde as pessoas podem colocar anonimamente os seus bebés indesejados.

É a partir do “depósito” de uma criança (Woo-sung) numa dessas caixas que vamos conhecer uma série de personagens unidas por essa decisão. Em primeiro lugar, a mãe da criança, So-young (Lee Ji-eun), que se arrepende do que fez e que ao voltar atrás da decisão é confrontada com dois homens: Sang-hyun (a estrela de “Parasitas” que aqui viu a sua interpretação reconhecida com a Palma de Ouro”, Song Kang-ho) e Dong-soo (Gang Dong-won), parceiros de negócios na venda de bebés no mercado negro. Quem está à espera de um duo mercantilista e durão nesse negócio condenável, cedo se apercebe não ser esse caso: o que os move, e principalmente Dong-soo, também ele um órfão, é afastar as crianças dessa rota de orfanatos, de esquemas burocráticos e de vidas em suspenso, numa longa espera sem verdadeiro afeto familiar. Eventualmente a dupla consegue convencer a jovem mãe a acompanhá-los nessa demanda, a de encontrar uma família com condições para Woo-sung, acabando todos eles perseguidos por duas agentes lideradas por  Su-jin (Doona Bae), que quer apanhar os vendedores em flagrante para os poder prender.

Tal como “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões”, existe uma dimensão de pessoas que opera fora da lei, mas que esconde por baixo dessa capa óbvia motivações muito pessoais. E isso também atinge Su-jin, também ela com razões pessoais na sua inabalável convicção de travar o trio, mesmo depois do comportamento dos foragidos ter revelado uma intensa nuvem cinzenta, ao ponto de gerar ambiguidades na postura do espectador perante os eventos.

Mas o coração do filme está mesmo no trio adulto, no bebé, e num pequeno rapaz, também ele órfão, que unidos numa road trip particular formam uma nova família artificial, unida pelo coração e amor ao bebé.

Como é seu apanágio, Hirokazu Koreeda aborda a mise-en-scène com a delicadeza e discrição que lhe é reconhecida, depositando nos atores e nos seus pequenos gestos a empatia necessária para cativar o espectador. E aliado a isso, um guião rico em diálogos sutis, e uma banda-sonora capaz de se agarrar às cenas e ao espectador, produzem um dos filmes mais bonitos do Festival de Cannes, mesmo que apenas sublinhe o trabalho que o cineasta tem feito ao longo de toda a carreira, ao invés de apontar uma qualquer nova direção.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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