Chegou o momento em que temos de dizer adeus ao Humanismo”, dizia-nos Victor Kossakovsky em 2019 por ocasião da estreia do seu “Aquarela”, um filme que meditava sobre as questões climáticas e a interferência humana. 

Nessa mesma entrevista, este “discípulo” de Alexandr Sokurov [que lhe salvou a carreira ainda nos tempos da URSS] dizia-nos igualmente: “o meu próximo filme segue uma porca, uma galinha e uma vaca. Não há palavras, nem humanos. Não existe nenhum massacre, nada. Filmo o que os animais são e quem são. E quando observar o filme, no final tenho a certeza que nunca mais na vida vai querer comer carne.

Um ano depois, “Gunda” chegava à Berlinale e agora – após sucessivos adiamentos devido à pandemia – estreia finalmente em sala e merece ser visto no maior ecrã possível. 

Profundamente sensorial, construído num preto e branco estilizado e nítido, onde não faltam sequências em slow motion, “Gunda” acompanha – longe de qualquer presença humana – a vida de animais numa quinta com toda a subtileza, compaixão e reflexão, focando-se principalmente numa porca (assumimos que a Gunda) que vai alimentando os seus filhotes que se acotovelam para conseguir mamar.

Além desta porca, encontramos também uma galinha só com uma perna e algumas vacas que nos dão um olhar delicado da sua vivência quotidiana num local onde sabemos qual será o seu destino final.

É essa paz e constante forma calma de apresentar as imagens, bem antes da tempestade que sabemos que chegará a qualquer momento, que nos faz passear por este espaço com uma tensão latente inerente numa viagem onde se expressa a consciência dos animais sem antropomorfizá-los abertamente. Por isso, quando no final observamos a nossa porca desesperada à procura dos seus filhotes que entretanto desapareceram, sabemos exatamente o que aconteceu. Nisto, e de forma bem perspicaz, o cineasta traça um retrato duro, duradouro, sensível e reflexivo sobre como o homem usa os animais a seu bel-prazer em nome da sua sobrevivência.

Filme militante sem a explicitude ou o grafismo normalmente associada à causa animal (pense-se em “Coswpiracy” ou até “Okja“), “Gunda” é acima de tudo o relembrar a vida de seres sencientes antes de terminarem nos nossos pratos, e uma forma indireta mas explícita de mostrar que esta filosofia moral (o Humanismo) que coloca os humanos como os principais numa escala de importância, no centro do mundo, está mais que ultrapassada.

Um belo, terno e doloroso filme que nos acompanhará durante muito tempo e que funciona como extensão de “Aquarela“, até porque a indústria agro-alimentar é uma das grandes responsáveis pela urgência climática que estamos a viver.

Pontuação Geral
Jorge Pereira Rosa
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