Segunda-feira, 20 Maio

Aquarela: “Chegou o momento em que temos de dizer adeus ao Humanismo”, diz Victor Kossakovsky

Aquarela está atualmente em exibição nos cinemas nacionais

Em exibição nos cinemas nacionais, Aquarela é um filme completamente estonteante sobre a água nos seus variados estados (sólido, gasoso, líquido), mas se estão à espera de um documentário didático e soporífero ladeado de belas imagens que contrapõem apenas a grandeza da natureza perante o homem, Aquarela- Força da Natureza vai noutra direção e não precisa de voz-off para nos dizer de forma ensurdecedora o que tem a dizer.

Um trabalho impactante, onde não falta suspense e momentos de verdadeira tragédia, tudo tecnicamente trabalhado a 96 frames por segundo (fps), um som absolutamente absorvente e até os acordes de Apocalyptica espalhados na banda-sonora. 

Estivemos à conversa com o cineasta russo Victor Kossakovsky, o realizador desta obra que estreou no Festival de Veneza (2018), ele que há uns anos atrás nos apresentou ¡Vivan las antípodas!Uma conversa que inevitavelmente tocou no tema da emergência climática, no cinema, e onde nomes como Alexandr Sokurov e Greta Thunberg foram chamados ao debate.  

No ¡Vivan las antípodas!  podemos quase dizer que se tratava de uma celebração da vida em pontos distantes do globo, mas Aquarela é como um filme de guerra. Uma guerra dos homens com a natureza, que nunca iremos ganhar. Podemos dizer isso?

Sim e nós começámos a guerra. Não foi a natureza. Começou bem com essa questão, pois assim vamos logo ao tema central.

O Humanismo fez coisas muito boas ao longo da História, mas chegou o momento em que temos de dizer adeus ao Humanismo. Eu não digo que a vida humana não é importante, mas que tudo o resto é tão importante como isso. A vida de qualquer outra criatura ao nosso redor é tão importante como a nossa. Nós, humanos, acreditamos que a nossa vida é o mais importante de tudo. isto é errado. O facto de não conseguirmos viver sem água mais de cinco dias diz logo que não somos a coisa mais importante de todas. Um iceberg pode ter centenas de milhares de anos, mas podes tirar um pedaço de gelo e beber. Ele está vivo. Isto significa que a água é imortal.

Nós mesmo temos – teoricamente – 70% de água no nosso corpo…

Exato. Mas ainda acreditamos que somos especiais. É um erro que vem desde a Bíblia [“E criou Deus o homem à sua imagem (…) e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que se move sobre a terra.“]. O Homem como o governante de tudo e todos. É um erro. Por isso digo que fomos nós que começamos a guerra.

E sempre que visitamos a natureza sentimo-nos bem, com aquelas sensações de tirar o fôlego. E depois pensamos nas pessoas e dizemos: ‘o que estamos a fazer?’ Estamos a fazer armas, algumas químicas, bombas, campos de concentração, campos de tortura. Prosseguimos a criar e inventar coisas que não devíamos.

E este tema tornou-se particularmente importante nos dias de hoje em que se debatem as alterações climáticas. O seu filme não diz uma única palavra sobre o tema, mas mostra isso tudo…

Veja como falamos das alterações climáticas. Estamos a cometer o mesmo erro. Se o clima mudar, muitas cidades como Nova Iorque e Amesterdão vão desaparecer. Ou seja, o que estamos realmente a falar, mais uma vez, é de nós.

40% do planeta está coberto de gelo. Sibéria, Canadá, Chile, Argentina, todas estas nações têm terreno coberto de gelo. Mas o que dizemos nós? Para nós isto vai ser uma catástrofe. Sim, para nós! Nada mais interessa.

Nós exploramos o planeta, vamos para o oceano e vemos ilhas de plástico do tamanho dos Pirenéus. Plástico, tudo plástico! E agora pensamos: Nova Iorque pode desaparecer. Sim, talvez seja o castigo.

Claro que não digo que estou feliz com isso, mas temos de parar com o “talvez exista” no tema do aquecimento global. Temos de parar com isso. Não podemos de todo continuar as coisas como estão. Temos de parar de poluir e parar de matar tudo. Nós matamos biliões de animais todos os anos. Imagina que cada pessoa come 100 quilos de carne por ano. Todos os anos, as pessoas “matam” animais indiretamente. Que estamos nós a fazer?

Estamos a destruir tudo…

E para alimentar estes animais que comemos, o que fazemos? Cortamos árvores nas florestas e plantamos milho e cereais para os alimentar. E para regar esses campos, que fazemos? Usamos água. Temos dois mil milhões de porcos no planeta, 2 mil milhões de vacas e 20 mil milhões de galinhas. Para os alimentar, precisamos de imensa água. Ao mesmo tempo, temos mil milhões de pessoas sem acesso a água. E sempre que cortamos árvores da floresta tornamos o solo mais árido, pois as florestas fomentam a precipitação. É um absurdo total.

Citou a Bíblia. Acha que é isso que está na origem de tudo isto, do Homem se achar o centro de tudo?

Se for junto de pessoas que não conhecem a nossa religião, a África ou até na Sibéria, na Taiga, as pessoas que lá vivem respeitam a natureza. A natureza para eles é Deus. Nunca dizem que são mais importantes que a natureza. Todos acreditam que há algo mais importante que eles. Nós? Nós matamos para o nosso conforto e satisfação. Nós não comemos apenas o que precisamos, mas o que queremos. Nós fazemos tudo assim, nós temos e produzimos coisas que não precisamos.

Sim, por exemplo, os smartphones, que anualmente consomem mais energia que um frigorífico, por exemplo.

Sim e imagine isto: se matamos tantos animais anualmente, temos de os congelar. E depois precisamos transportá-los, cortá-los, empacota-los. Pense em toda a energia que gastamos? E para quê? Quem disse que precisamos comer carne? Os cavalos não comem carne e são fortes e rápidos. Os elefantes não comem carne e são fortes. Eu não como carne desde os 4 anos e estou vivo. Por isso, porque decidimos comer carne? Quem é que disse que é mesmo preciso? É um erro.

Nós nem somos capaz de pensar de outra maneira. É como os telemóveis com o Wi-Fi. Se fores viajar de avião, colocas o aparelho no ‘modo avião’. É exatamente igual ao que fazemos.

Vamos comer e ficamos num “modo comer”, em que desligamos a ideia de sabermos de onde vem a comida. Temos a noção que os animais foram mortos para que possamos comê-los, mas colocamos em nós esse “modo comer”, o qual desliga a realidade. Seja há 5 ou 10 minutos, umas horas ou dias atrás, sabes que esse animal foi morto. Era algo que estava vivo, com olhos, coração, alma e empatia. Nós permitimos a nós próprios esquecer esse facto. E é por isso que nunca vamos poder mudar a história… vamos estar sempre a matar-nos uns aos outros.


Acha que estamos condenados, ou seja, que não conseguimos mudar?

Teremos de mudar, mas só quando começarmos a respeitar tudo à nossa volta.

Mas acredita mesmo que vamos mudar a nossa maneira de ser?

Vamos. Antigamente éramos canibais. Tínhamos a escravatura. Tratávamos mal as mulheres. Bem, ainda o fazemos, mas menos. Ainda assim, estamos a melhorar, certo? Agora é tempo de dizer que a natureza é tão importante como nós.

E por falar disso, da mudança e da emergência climática. Há um novo ícone dessa luta, na forma da Greta Thunberg. Que acha dela?

Acho que vou passar a pergunta, pois tenho algum medo quando crianças são envolvidas em guerras. Eu também tenho medo quando políticos ou cineastas entram nestas conversas. Isto são grandes e importantes decisões científicas. Os cientistas devem pesquisar as coisas sem pressões de políticos, ambientalistas, cineastas ou jornalistas.

Acha então que tudo tem de ser uma decisão completamente científica?

Tem! Pense quando perguntam se acreditamos no aquecimento global. Mas porque sequer se usa o verbo acreditar? Eu quero saber, não quero acreditar.

2+2 são 4. Eu sei, não acredito que seja. O problema aqui é que quando afirmam que 97% dos cientistas dizem existir aquecimento global, quer-se saber o que pensam os outros. São grandes decisões que o mundo tem de tomar. É como o Copérnico e o Galileu. Eles eram apenas “um contra todos”. Galileu ganhou a todo o planeta. E estava certo. Copérnico estava certo. Newton estava certo. Einstein também. Isto significa que se 97% ou até 99,9% dos cientistas dizem isso, não significa que estejam corretos.

Eu não quero que esses 3% sejam atacados por jornalistas, cineastas, políticos, etc. Não, eu não quero a opinião pública. Eu quero uma discussão pública aberta entre os cientistas. Quero que se sentem num local, os que acreditam e os que não acreditam [no aquecimento global], durante uma ou duas semanas. E até os filmo de borla. Não preciso dinheiro, aceito filmar esta discussão de borla. E no final dessas duas semanas ou mais, eles deverão chegar a uma conclusão qualquer. Assim, vamos saber verdadeiramente as coisas, não precisamos “acreditar”. Essa era, para mim, a solução.

Vamos agora para algumas questões técnicas sobre o seu filme. Porque escolheu as 96 fps para o seu projeto?

Fiz um filme há uns cinco anos atrás, um documentário para crianças, Varicella, sobre dança. E a criança estava a fazer um movimento e notei que não conseguia ver a sua face. Ela estava à frente da professora, de mais bailarinas, da mãe, irmã e amigos. Estava muito nervosa e nos movimentos eu não conseguia captar isso, via tudo baço. Parei e disse: porque estamos a filmar em 24 fps? Já passaram 100 anos e ainda estamos a usar os mesmos 24 quadros por segundo.

As 24 fps são o mínimo de quadros que o nosso cérebro consegue conectar num movimento contínuo, pois nos tempos analógicos não era possível filmar mais rápido. Era algo gigantesco, dispendioso e difícil de fazer. Hoje em dia, não há razão para isso. Porque continuamos nas 24 fps? Se estamos na era digital, não existe razão para continuarmos nisso. Estamos a perder inúmeras coisas.

Neste cinema [El Corte Inglés] deve ver o Aquarela a 48 fps, não a 96 fps. Existem poucos sítios no mundo que permitem ver a 96 fps por segundo. Mas estão a crescer. Há dois anos atrás só havia um sítio. Agora já existem 7.

Agora, até temos pessoas como o Ang Lee a irem na mesma direção que eu, mas tem de ser uma necessidade estética. Claro que os filmes de ação parecem espetaculares a 96 fps, mas não é suficiente. Tens de ter uma verdadeira razão para usar esse modo. As pessoas que viram o filme nesse modo em Nova Iorque e em Los Angeles, escreveram-me maravilhados. Todas as gotas da chuva eram minuciosas e detalhadas. Os 96 fps foi uma escolha sábia e, claro, fiz muitos testes. Fizemos testes durante meses antes de começar a filmar: a 48, 60, 96 e 120 fps.

Ang Lee usou as 120 fps no seu último filme….

Sim, mas infelizmente – e note que não estou aqui para criticar o trabalho de ninguém – é um filme de ação onde só duas sequências precisavam ser filmadas com esses 120 fps. O resto do filme é normal (…) planos estáticos de pessoas sentadas num café, num restaurante ou em casa. Não precisas de 120 fps para isso. Ok, na sequência das motos e das lutas tinha sentido, no resto não.

E a importância do som, porque realmente o som no Aquarela é algo de estonteante, levando o espectador a ficar em suspense, sempre stressado com o que vem a seguir?

Quando a cor apareceu no cinema, levou algum tempo até os cineastas perceberem o potencial. Quando apareceu o som em estéreo, levou também tempo para todos perceberem o alcance. Depois o Digital Cinema e agora o Dolby Atmos apareceu e mais uma vez acontece o mesmo. (…) É preciso tempo para entender os sistemas e porque precisamos deles. Isto tem de fazer parte do processo como a dramaturgia. Fazer parte da estrutura do filme, tal como a decisão das fps.

Dedicou o Aquarela a Alexandr Sokurov? Porquê?

Sabe, vim hoje a Portugal por causa do Sokurov.

A sério? Conte lá isso…

Vi o filme dele Pai e Filho (2003), que foi filmado em Lisboa. Sempre desejei ver a rua do filme. Quando soube que o Aquarela estava em Portugal, pensei: “Hum… é uma boa hipótese de mostrar o meu filme aos portugueses e aproveitar e ver a rua“.

Tenho um ponto de vista muito distinto de toda a gente sobre o Sokurov. Conheço-o há 40 anos e lembro-me dele vir para São Petersburgo fazer filmes. Acho que ele é um cientista no Cinema. Inventa novas linguagens, mais que qualquer outro.

Hoje em dia, quem – no mundo do cinema – inventa novas linguagens? Ninguém, e ele – ainda hoje – faz coisas que ninguém fez antes. É alguém que ainda pensa na linguagem cinematográfica, inventando novas letras, pontos, etc. Ele é aquele que ainda consegue surpreender. Em cada um dos seus filmes, há algo que nunca vimos antes. É como um matemático. Existem matemáticos para as escolas, outros para as universidades, e outros para trabalhos de elite. O Sokurov é alguém que pensa noutro tipo de matemática, faz novas regras. Fez A Arca Russa com um plano sequência de 90 minutos. Quantos filmes depois – com o mesmo estilo – apareceram?

Para além disso, ele foi muito importante para a minha vida pessoal. Salvou a minha carreira profissional, ainda nos tempos da URSS. Tive um problema sério e eles queriam despedir-me. Ele insistiu em arranjar-me trabalho como montador. Na URSS, esse trabalho era só para as mulheres. Ele convenceu o chefe da Lenfilm a dar-me esse trabalho. Nos formulários para esse emprego, nem existia a opção para os homens.

A sério? Alguma razão particular para isso?

Não sei, era um trabalho tradicionalmente para mulheres. Primeiro foram homens, como o Kuleshov, mas depois e durante cinquenta anos foi sempre um trabalho de mulheres. Por isso, quando comecei a montar, Sokurov viu que eu sabia trabalhar naquilo, gostou e convenceu-os a darem-me o trabalho, antes mesmo de eu ser assistente de câmara ou de realização. Na verdade, na época não fui politicamente correto e propus um filme sobre o funeral do [Leonid] Brejnev. Foi complicado e queria-me demitir, mas o Sokurov convenceu-os…

Ou seja, há uma relação pessoal muito forte com ele?

Sim e durante toda a sua vida foi muito bom para mim. É um amigo muito próximo.

Voltando ao filme, pode-me falar daquele barco que vemos com a bandeira portuguesa?

Sim, claro. Começamos a viagem para a Gronelândia em Portugal. Queríamos ir diretamente para o norte da Gronelândia, mas uma tempestade obrigou-nos a desviar para o Canadá. E só depois do Canadá é que fomos para a Gronelândia.

Foram umas filmagens muito duras e intensas, não?

Foi horrível. Foi durante um ano e qualquer momento foi sempre nos limites. Estávamos constantemente a arriscar a nossa vida.

Ficou completamente satisfeito com o resultado final ou mudaria algo?

Não mudava nada. A minha ideia era diferente, mas quando cheguei ao Baikal (lago) e filmei acidentalmente aquele momento horrível que vemos no filme (um trágico acidente), tudo mudou. O plano de trabalho mudou e comecei a improvisar totalmente.

E tem já um novo projeto em mente?

Sim, acabei-o hoje…

Um documentário….com preocupações ambientais?

Se chama a este Aquarela um documentário, sim, é um novo documentário (…) Bem, é um filme que segue um porco, uma galinha e uma vaca. Nada de palavras, nada de humanos. Nenhum massacre, nada. Filmo o que são e quem são. E quando vir o filme, no final tenho a certeza que nunca mais na vida vai querer comer carne. Todos os que viram até agora disseram isso…

E quando o poderemos ver?

Brevemente. Não posso dizer quando, mas será muito em breve. Um par de meses…

Há uma década atrás, definiu 10 regras para quem quer filmar documentários? [mostramos uma folha com essas dez regras a Viktor]

Deixe cá reler. [Depois de uma olhada rápida ao papel, Viktor afirma sem demoras] Sim. Continuam a ser as mesmas…

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