Terça-feira, 19 Março

Laís Bodanzky: “Dilma sofreu um impeachment com tanta facilidade por ser mulher”

Laís Bodanzky não esconde. O atual presidente brasileiro, Michel Temer, não a representa e Dilma Rousseff foi retirada do cargo com tanta facilidade por ser mulher. Para ela, o Brasil vive um retrocesso, não só pelo avanço dos movimentos evangélicos, como também pelos círculos conservadores que até se têm unido à extrema direita brasileira. Como será o futuro e o papel da mulher no Brasil?

Certo é que de acordo com o seu mais recente filme, Como Nossos Pais, que estreia esta semana nas salas portuguesas depois de passar pelo FESTin, o lugar da mulher não é no recato do lar.

No filme seguimos Rosa (Maria Ribeiro), uma mulher que sonha em ser dramaturga mas que vê os seus sonhos serem reprimidos por causa do trabalho do marido, um antropólogo idealista que quer salvar o mundo, mas não começa essa tarefa em casa. Com crianças para criar, um pai que precisa de ajuda e uma mãe que a vai colocar num dilema, o cerco aperta-se e os sonhos de Rosa parecem cada vez mais longe.

Munindo-se das ideias de Henrik Johan Ibsen, em especial da sua peça Casa de Bonecas, a realizadora entrega ao espectador a história de uma mulher que quer ir mais longe e que acima de tudo é vítima do pior tipo de opressão: a invisível, vinda da sua mãe e da sociedade.

Estivemos à conversa com Laís Bodanzky. Aqui ficam algumas ideias sobre o seu filme, o papel da mulher e a situação do Brasil.


Maria Ribeiro e Lais Bodanzky
 

O que há da Laís na Rosa do seu filme

Tem muito de mim por eu ser uma mulher contemporânea. Muitas das coisas que a personagem vive, sim, já vivi coisas parecidas, assim como as outras mulheres que assistem ao filme e se identificam. Muitas dizem-me, “eu sou a Rosa”. A Rosa representa um pouco de muitas de nós. Há situações que pensamos que só nós é que vivemos, mas na minha pesquisa descobri que não.”

 

A urgência em dar a voz a uma mulher oprimida

Laís reconhece que na construção do seu novo projeto, esta ideia foi “espontaneamente necessária“, até como descoberta pessoal e coletiva: “Apesar de me achar uma pessoa esclarecida, vi-me a viver situações de opressão, muitas vezes invisíveis, como quando uma outra mulher te oprime, ou quando tu mesmo te oprimes.

Essa opressão é a mais delicada e é aquela que tento mostrar. A própria mãe [da protagonista], que é tão transgressora, tão libertária, de outra geração, que experimentou a contracultura, a revolução na década de 1970, como é que ela fala diz à filha que ela tem de ficar em casa a dar banho aos filhos para o seu marido ir salvar o planeta?”. “Porque não pode ela salvar o planeta do seu jeito? Porque tem ela de deixar de viver os seus desejos, de ficar escondida dentro de casa, como a humanidade fez com a mulher até agora?

A mulher começou a votar, a participar na vida pública recentemente. No Brasil, a mulher só começou a ser respeitada como cidadã, com direito ao voto, em 1932. O direito da mulher a um trabalho, a um espaço de liderança, em várias áreas, é muito recente na História. No próprio Cinema, o lugar de realizadora é muito raro. Agora nos Oscars tivemos pela primeira vez uma mulher nomeada como diretora de fotografia [Rachel Morrison], que dentro do cinema é uma área onde só existem homens. É um sistema fechado, rígido. Por isso, para ela  lá estar, sabemos que lutou bastante.

A presença da mulher na sociedade, na nossa história, sempre foi dentro de casa, sem direito à educação, sempre reproduzindo o imaginário infantil, e isso está arraigado nas gentes. Mesmo numa família, como a da Rosa, de inteletuais, de pessoas ilustradas, de pessoas que querem salvar o planeta, mesmo nesse lugar aquela mulher acha que o lugar da sua própria filha é ficar dentro de casa e não ir de encontro aos seus desejos e sonhos. Deviam combinar uma nova vida, a Rosa e o Marido. Os dois fizeram os filhos.”

 

A escolha do título Como Nossos Pais

Ao contrário dos meus outros filmes, o título nasceu antes mesmo de escrever o roteiro. E surgiu como uma provocação temática. Do lote de coisas que tinha, escolhi que queria falar sobre isso.

Como gostei do conceito da ideia, já tinha título. Mas como todos os filmes, este podia mudar até ao lançamento. E até quando estava mais avançada nas filmagens cheguei a querer mudar. (…) A minha preocupação é que não podia fazer o título com essa música e não a tocar. Mas se toco a música, a letra torna-se uma legenda que diminui sobre aquilo que o filme quer dizer. Então pensei que não queria mais esse nome. Tentei outros, mas não gostei. O melhor era mesmo Como Nossos Pais.

E aí decidi tocar a música sem a letra.

 

O papel da peça de Ibsen no filme e na construção da Rosa

A ideia da Rosa em ser dramaturga, de continuar a peça de Ibsen, surgiu após a investigação para a história e personagens do seu filme. Será esta peça a mais peça mais feminista desde o século XIX. Laís diz que ainda é, explicando como chegou a essa conclusão: “Eu descobri isso na pesquisa para o filme, numa palestra de uma psicanalista brasileira chamada Maria Rita Kehl. Ela é maravilhosa.

Uma das coisas que aprendi, é que – até hoje – essa peça é um marco na dramaturgia e nenhuma outra superou o tema feminista que ela tem. Porque infelizmente ainda é atual. A sociedade ainda não se renovou a ponto de surgir um texto em que estejamos [as mulheres] num outro patamar. Quando a Maria Rita falou [da peça], eu nunca tinha assistido ou lido uma encenação. Mas acabei por ler. Quando li, para mim foi muito chocante, principalmente por essa questão do imaginário da mulher boba. Essa mulherzinha [Nora, da peça] que quer corresponder que ela é correta, que é certa, quer que a sociedade veja a sua família como perfeita. É mentira!!

 

Na hora que ela rompe, o que tem de fazer? Tem de sair de casa e sai de um jeito muito revolucionário, porque ela sai, deixa a família, deixa os filhos. Mesmo nos dias de hoje isso seria chocante. Ela tem muita coragem e só fazes algo assim quando estás nos limites. Quando eu li isso pensei: a minha personagem [a Rosa] tem de ler essa peça. Daí eu a colocar como dramaturga, ser esse o seu desejo. E assim, com certeza, ela vai ter contacto com esse texto. Foi assim que eu decidi a profissão que a Rosa gostaria de ter.”

 

A mulher e o avanço dos movimentos evangélicos e conservadores no Brasil

No Brasil, quando a nossa presidente sofreu um impeachment, que na minha opinião entendo como um golpe, isso aconteceu com tanta facilidade por ela ser mulher. E também por termos um congresso em que boa parte dele é evangélico e também conservador. Quem assumiu foi o vice-presidente, totalmente cúmplice de toda política que ela fez, ou seja, porque ela saiu e ele ficou? Na época, assim que ele assumiu, a sua equipa não tinha uma única mulher. Quando a Dilma saiu, a sua presidência era ela e várias mulheres; ministras, secretárias, vários cargos importantes. Ele tirou todas as mulheres. Voltou a ser um espaço de poder de homens.”

 

O Cinema Brasileiro e extremismo de posições políticas no Brasil

No caso do cinema, nós temos a Agência Nacional do Cinema, que justamente foi uma conquista do governo anterior, muito importante, pois funciona como amortecedor. Durante a crise económica mundial, o cinema brasileiro não se ressentiu. É uma estrutura muito organizada, pré-estabelecida, com uma engenharia muito inteligente e independente.

Precisamente por ser uma agência, por não estar ligada ao ministério diretamente, por não estar ligada à troca de poder, quando saiu a Dilma e entrou o Temer, a agência permaneceu igual. Todas as outras áreas ligadas à cultura estão a viver um momento trágico.”

O que assusta no Brasil atual

O que assusta é que surgiu uma raiva do governo do PT, do Lula e Dilma – e o Lula é ainda uma pessoa muito forte. Se as eleições fossem hoje, ele ganhava. As pessoas que estão contra eles associaram-se a um pensamento de extrema direita. Isso é que é assustador, porque tem uma pessoa, que nem gosto de falar do nome dele que me dá medo.

Assusta-me porque ele faz lembrar – num outro registo – algo que aconteceu na Alemanha na época do Hitler quando ele começou a surgir com força. Populista, a princípio para bem do povo, e quando fomos a ver era um movimento completamente retrógrado, reacionário, e é isso que pode acontecer no Brasil.

Nós temos hoje no campo artístico um movimento muito avançado, na expressão da mulher, na expressão do género. A maior parada Gay do mundo é a brasileira. Agora em Berlim, o Teddy foi para o Bixa Travesti, documentário, e o de ficção também é brasileiro [Tinta Bruta]. Os dois prémios principais!! Nós temos artistas no Brasil de vários outros géneros sendo reconhecidos – muitos travestis, muitos transgêneros. Eu nunca tinha visto isso. É muito bonito como existe essa diversidade e, justamente, porque isso vem um movimento contrário reprimi-lo.

O movimento evangélico, que é o do prefeito do Rio, mandou fechar um terreiro de candomblé. Porque isso é do demónio?! Nós temos um lado muito avançado, até em relação ao mundo, e em compensação temos um movimento muito retrógrado que está em sintonia com alguns lugares, como o próprio Trump nos EUA.”

 

O Streaming e o Cinema

Para Laís, ela gosta é de contar histórias e o meio ou formato não é primordial: “Desde a pré-história que o homem gosta de se sentar à volta do fogo e ouvir histórias. O formato vai muitas vezes mudando, mas um novo não significa que vai extinguir o outro. O Teatro está aí até hoje, claro que de uma outra forma. Ele existe.

Acho que o Cinema não vai acabar, ele vai recolocar-se, readaptar-se. As novas tecnologias existem e gosto delas. A gente adapta-se. E tem um lado nas novas tecnologias, tanto na captação de imagem como na exibição, mesmo amadora, mais democrático e acho isso importante. De alguma forma, as minorias conseguiram ter voz, finalmente. Porque se tiver de depender do outro lado, que por hábito é o homem branco mais velho e confortável, ele não vai querer mudar. Esses espaços alternativos são fundamentais para refletir e criar o debate.

Eu não vejo problema nenhum com o streaming, contando que também seja regulado. Como aconteceu no Brasil, com as salas de cinema. Nós temos quotas de exibição dos filmes brasileiros. O problema do Video On Demand no Brasil, que é relativamente novo e está a surgir a grande velocidade , é que ainda não deu tempo de discutir quais são as regras. Se não discutirmos isso, a indústria do cinema brasileiro cai e eu vou parar de contar as minhas histórias. E aí só os americanos vão ficar para contar as histórias. E isso eu sou contra.”

 

Novos Projetos

Laís confessa que tem um novo projeto, ainda sem nome e na fase da escrita de argumento. Quando questionada se o filme teria o nome de uma música, como três das suas quatro longas-metragens, uma “luz” surgiu sobre si. “Espere aí que tive uma ideia e tenho de anotar“, diz entre risos, enquanto faz pequenos apontamentos.

Já com “ideia” guardada, fala que a película diz respeito ao Brasil e a Portugal: ” é a história do nosso Dom Pedro I, um filme de época, não posso falar do recorte da sua história que vamos falar, mas ele tem memórias da sua infância em Portugal, quando partiu para o Brasil.”

E terá ele uma equipa e filmagens em Portugal? “Sim“, responde com convicção, acrescentando que quer “trabalhar com atores portugueses” e que pretende fazer um casting para as personagens históricas nacionais.

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