Sexta-feira, 26 Abril

Entrevista com Gustavo Galvão, realizador de «Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa»

Ele fez um filme independente, um road movie onde as suas personagens circulavam por várias pequenas cidades do imenso interior brasileiro. Uma vez lançado, terminou por arrebatar a imprensa especializada de norte a sul do país. No cardápio, um pano de fundo beatnik, algumas parcelas de desespero e almas vazias a penar em busca de «Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa». O filme é exibido esta sexta-feira (10/04) no FESTin e o C7nema conversou com o seu realizador, Gustavo Galvão, sobre este auspicioso segundo trabalho…

Fez um road movie muito original onde, por exemplo, não dá maiores explicações para o ponto de partida para os périplos dos principais personagens. São simplesmente pessoas que parecem perambular ao sabor do momento. Como foi a construção deles?

Pedro e Lucas, os protagonistas, carregam algo das minhas próprias experiências e das experiências de pessoas próximas a mim. Pedro tem muito da minha vivência como alguém que já foi jornalista e que precisou recomeçar a vida algumas vezes. Já Lucas traduz muito a personalidade de amigos que cruzaram meu caminho desde a adolescência, pessoas que confrontaram quem eu era e quem eu achava que deveria ser. A construção desses dois personagens foi um processo que se estendeu por quase 20 anos – período que abrange desde o primeiro lampejo da trama do filme até os últimos instantes da montagem, já em 2013. O filme e seus personagens foram construídos à medida que eu crescia e observava como eu e meus amigos lidávamos com a vida.

Como foi o seu processo de escrita? Os modelos tradicionais de escrita de argumento indicam que de antemão tem que se saber o final da história e a solução para os dramas dos personagens. Foi assim que funcionou para si? De que forma organizou as diferentes etapas da trajetória dos personagens e as suas mudanças ao longo do filme?

Tudo começou com a ideia que eu tive para uma cena, em 1994. Não sabia se aquilo seria o começo ou o fim de algo. Tinha 18 anos, nem imaginava que iria fazer cinema um dia! O facto é que desenvolvi a história a partir disso, puxei o fio da trama para ver até onde eu iria com essa cena. Passaram-se 13 anos até que eu fechasse a primeira versão do argumento. Nesse período, minha vida deu vários giros e incorporei essa vivência à história. Foi preciso esse tempo para perceber onde queria chegar no final das contas: num filme que tratasse de pessoas “atropeladas” pela necessidade da mudança. Foi um processo muito intenso para mim, muito pessoal, mas que correu de forma natural. Não recorri a métodos ou modelos de argumento: deixei que a história fluísse com seu ritmo e seu tempo.

Em alguns momentos têm-se a sensação que não se importou particularmente em ter personagens principais “simpáticos” ao espectador. Este foi um risco consciente que quis correr?

Sim, sem dúvida! Se tomarmos as opções estéticas e dramáticas, fica claro que Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa não tem compromisso algum com o politicamente correto nem com as regras de um filme comercial. O cerne dessa história é incômodo e cala fundo em todos nós: nós somos realmente quem pensamos ser? Ou somos apenas o que os outros esperam de nós? Até que ponto estamos dispostos a entender o que realmente somos? Não por acaso, por trás das aparências, os personagens escondem dúvidas, angústias, inquietações. Para ser fiel ao tema que abordamos aqui, eu deveria correr esse risco de incomodar o espectador. Aliás, como espectador, gosto de filmes assim.

Seu filme é uma produção independente que acabou por ter uma boa circulação em termos de salas e mídia especializada no Brasil. Como foi a montagem financeira e logística do projeto desde que decidiu fazer o filme até a sua concretização?

Passei seis anos achando que precisaria de R$ 1,5 milhão para fazer o filme (cerca de € 450 mil), mas tive muita dificuldade para captar recursos para produzi-lo. Uma conversa mudou o rumo dessa história: o consultor de argumento, o argentino Miguel Machalski, me convenceu a fazer o filme com a metade do dinheiro. Assim que captei R$ 700 mil, decidi rodar só com este valor (cerca de € 200 mil, atualmente). A decisão acabou me reconectando com os filmes que gosto, em especial com o cinema marginal brasileiro e o cinema de baixo orçamento, e até com as minhas origens, pois comecei dirigindo curtas-metragens com poucos recursos e muita disposição para correr riscos. O lançamento comercial no Brasil seguiu a mesma lógica de guerrilha, que faz valer cada centavo disponível. Assim chegamos em 17 cidades. Foi um feito pessoal, pois distribuímos de forma independente.

Neste momento trabalha como produtor executivo de um projeto que não é seu, certo? E os planos para dirigir um novo filme? Gostaria de fazer algo muito diferente do seu primeiro projeto?

Na verdade, sou produtor associado do longa-metragem Mulher do Pai, é o primeiro dirigido por minha mulher, Cristiane Oliveira. Passada essa aventura (filmaremos num vilarejo perto da fronteira Brasil-Uruguai), vou me concentrar totalmente em dois projetos de longa que desenvolvo em paralelo. Deve demorar de três a cinco anos para que venham a sair do papel, mas é um tempo importante para amadurecer certas ideias. São filmes que conversam com o Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa em alguns aspectos (a abordagem estética, os planos longos, o senso de humor que transita entre o sutil e o inesperado), mas que se aproximam do universo feminino (ao contrário do anterior, que é bastante masculino, como uma crítica ao estado das coisas no Brasil hoje). A origem desses projetos todos é a mesma, no entanto: discutir as relações contemporâneas tendo Brasília, a capital do Brasil, ora como pano de fundo, ora como assunto.

 

Quais são seus cineastas favoritos? Eles influenciaram o seu filme?

Roy Andersson influenciou diretamente o meu filme anterior, Nove Crônicas para um Coração aos Berros. Com certeza a admiração que sinto por ele influenciou também o Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa, além de me reaproximar do cinema de Jim Jarmusch e Aki Kaurismäki. Os três trabalham o absurdo do quotidiano e o humor de forma muito peculiar, que dialoga com o meu modo de ver o mundo e de pensar o cinema. Inspirado nesses três mestres, gosto cada vez mais de planos longos, que trazem significados tanto aos silêncios entre as falas quanto para as falas em si.

 

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