Terça-feira, 19 Março

«The Post» por Jorge Pereira

Logo nos momentos iniciais, antes da entrada pela guerra do Vietname a dentro ao som de Green River dos Creedence Clearwater Revival, The Post surge com o ecrã negro dos créditos  a mimicar All the President’s Men (Os Homens do Presidente), clássico de Alan J. Pakula, que volta a ter no final do filme de Steven Spielberg uma ligação a si, como que se assumindo como uma espécie de prequela ou “filme-irmão” sobre investigação jornalística – em casos diferentes – à governação de Richard Nixon.

Porém, e ao contrário do caso Watergate, que só a Nixon dizia respeito, e que foi tratado nesse Os Homens do Presidente e no recente Mark Felt, The Post de Spielberg é uma análise aos papéis do Pentágono, documentos secretos que mostravam como em várias presidências (Dwight D. Eisenhower, John Fitzgerald Kennedy, Lyndon Johnson e Nixon) o governo mentiu ao público norte-americano sobre a realidade da guerra do Vietname.

Claro que a governação de Nixon é grande visada aqui, mas quando surgem em cena frases como “Não podemos ter uma administração que dita a nossa cobertura [jornalística] apenas porque não gostam do que escrevemos sobre eles“, sabemos que há setas apontadas aos dias de hoje, com um destinatário muito claro: Donald Trump e a sua guerrilha de palavras contra a imprensa, com frases como Fake News a ficarem como uma imagem de marca sua.

O próprio Spielberg disse em entrevista que normalmente os seus filmes demoravam a ser feitos 14 meses, entre o guião e o pós produção. Aqui ele trabalhou tudo em 9 meses, dada a necessidade de combater a pressão de Trump à imprensa e marcar uma posição escancarada que se assume de todo política.

E se há coisa que sabemos é que Spielberg sabe filmar e todos os momentos deste The Post são de uma incrível espessura com ramificações em várias camadas, dentro e fora do jornalismo e da política (com advogados à mistura). Se o combate contra o governo pela liberdade de expressão da imprensa é o às trunfo de toda a obra, a verdade é que o filme entra igualmente no campo das rivalidades (o New York Times sempre na mente do Washington Post), das fragilidades do jornalismo como meio económico (com ações na bolsa, etc), bem como na emancipação feminina num mundo de homens e negócios, onde qualquer passo em falso pode ditar a queda de um império familiar com tradição.

Para este último ponto, o cineasta foi buscar Meryl Streep, que com a mesma perseverança e rigor com que se tornou a Dama de Ferro no filme de Phyllida Lloyd sobre Margaret Thatcher em 2011, dá vida aqui ao pilar básico que sustenta todos os avanços a nível de investigação do jornal. Esse crescendo de influência e força da personagem de Katharine Graham, herdeira do Washington Post, que inicialmente mostra grandes dificuldades e hesitações em se impor e separar o seu estatuto das amizades pessoais, mas que aos poucos se vai afirmando, marcando a sua posição e derradeiramente dando o “sim” que impeliu que todo o caso viesse à baila, é o derradeiro triunfo de uma atriz que voltou, tantos anos depois, a ter de demostrar porque é considerada uma das mais clássicas e entusiasmantes figuras do Cinema atual.

A acompanhá-la nessa jornada encontramos Tom Hanks, ele que encarna Benjamin Bradlee (Jason Roberts em Os Homens do Presidente), o editor do jornal que desafia e instiga Graham e todos os seus colaboradores a entrarem na batalha com a Casa Branca, e sobre o que os jornalistas podem ou não podem publicar (He says we can’t, I say we can). Hanks entra pela personagem a dentro com a sua habitual sapiência, sem cair no erro do jogo de imitação aos limites.


Benjamin Bradlee : Jason Roberts Vs Tom Hanks

Veja-se o momento em que lança um “Woow” quando ouve a frase presente nos documentos que diz que o Vietname do Sul era uma “Causa Perdida“. Esse momento resume todo o espírito de um homem que mantém uma enorme valentia e tenacidade no meio de milhares de documentos secretos e pressões vindas de todo o lado, rejubilando e cintilando à medida que ia ganhando pequenas batalhas neste conflito entre o “furo jornalístico” e a guerra aberta com a presidência.

Apoiado por estes dois bastiões da arte de atuar e com um guião bem construído, bem balanceado entre o drama e o thriller, mas com capacidade para ainda conter alguns registos de humor, a tarefa de Spielberg está facilitada, incutindo depois o cineasta a sua capacidade em fazer Cinema onde muitos fazem telefilmes.

Num filmes de interiores, de salas de jornalistas, de salas de reuniões, casas particulares, restaurantes e  corredores, Spielberg move a câmara ou deixa-a quieta na sua “perseguição” às personagens eventos, capturando e marcando o estado de espírito de cada cena e ator, sejam estes momentos de criação de riscos (notícias) ou de avaliação e introspecção dos mesmos (réplicas da publicação dos artigos). Essa elasticidade não só torna o filme muito mais rico e ritmado (com a ajuda da montagem de Sarah Broshar e Michael Kahn), como serve de manual para todos aqueles que se arriscam em aventuras similares, mas que não conseguem sair do formato pequeno ecrã.

Acrescente-se a tudo isto o cuidado do design de produção, do guarda-roupa, da palete de cores e iluminação que Janusz Kaminski incute, e, especialmente, os 35mm com que tudo foi filmado e que abarcam na sua essência a década de 1970 sem nunca que cair no filme académico ou estilizado plásticamente.

Por todas estas razões, The Post é um labiríntico triunfo multidimensional e talvez o melhor filme de Spielberg desde Munique. Até porque podemos estar a ver um caso antigo, mas ele encaixa perfeitamente nos tempos atuais, mostrando a sua urgência na defesa da imprensa contra governos e líderes que confundem as nações consigo mesmos.

Nem Nixon nem Trump são os EUA. Nós sabemos disso. Nixon foi avisado, falta Trump…


Jorge Pereira

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