Terça-feira, 19 Março

«Martírio» por Aníbal Santiago

“Martírio” é um documentário relevante e revoltante, pronto a despertar reflexão, informar, desfazer equívocos, despertar consciências e dar voz àqueles que são largamente silenciados, nomeadamente, os Guarani Kaiowá. É um regresso do realizador Vincent Carelli (que assina o filme ao lado de Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho) aos documentários que envolvem temáticas e problemáticas relacionadas com os indígenas, naquele que é o segundo capítulo de uma trilogia iniciada com “Corumbiara”. No caso de “Martírio”, o cineasta coloca em diálogo o passado e o presente, enquanto expõe as tentativas dos Guarani Kaiowá para reconquistarem algumas terras que pertenceram aos seus antepassados e viverem com a dignidade que lhes é constantemente roubada em atos de imensa desumanidade.

É uma luta desigual, que perdura há um largo número de anos, sempre com o mesmo lado a ser prejudicado, ou seja, o dos indígenas – com estes a terem de lidar com políticas desastrosas, a força do lobby rural e um conjunto de atos que desafiam, e muito, os Direitos Humanos. Na sua entrevista à Revista Trip, Carelli salienta que “Aqui não é a Síria, não é possível esses homicídios a bala em pleno século XXI!“. Ao visionarmos o documentário compreendemos ainda mais o significado desta frase, tal a violência física e emocional que é infligida sobre as tribos sem que estas sejam defendidos de forma efetiva. Nesse sentido é de elogiar um filme como “Martírio”, que consegue expor a complexidade que envolve estes assuntos e sobressair para além das boas intenções, com o realizador a demonstrar que efetuou com cuidado um meritório trabalho de investigação e recolha de informação.

O cineasta e antropólogo reuniu material que filmou durante um período de tempo alargado (cerca de trinta anos), vídeos de arquivo, mapas, notícias, algo que permite efetuar um retrato pungente, informado e informativo, embora nem sempre dinâmico, sobre a forma como os Guarani Kaiowá vivem toda esta situação e os fracassos dos sucessivos governos a lidarem com os indígenas. Note-se os casos da criação da CAND, durante o Governo de Getúlio Vargas, que contribuiu para que eles perdessem ainda mais territórios, ou antes disso a SPI, uma instituição que também esteve longe de servir de proteção aos índios, ou a incapacidade do poder político em reconhecer a propriedade destes elementos. Os exemplos de medidas que os prejudicaram ao longo da História acumulam-se, com Carelli a expor esta situação de forma bastante didática e esclarecedora, tendo muitas das vezes os discursos dos Guarani Kaiowá como ponto de partida para regressar ao passado e envolver-se pelas raízes destas expropriações e tentativas de destruição de culturas.

A insegurança, as privações e os suicídios pontuam o quotidiano destas comunidades que vivem em condições bastante delicadas (em reservas sobrelotadas ou em acampamentos de beira da estrada), enquanto as autoridades competentes não conseguem proteger a sua integridade física. A presença destes homens e mulheres nestes territórios de Mato Grosso (e não só) mexe com os interesses do agronegócio, muitos deles instalados no poder político e pouco interessados num povo que tem sofrido com negligências atrás de negligências ao longo da História. As expropriações, retomadas, expulsões, regressos ao território e batalhas judiciais têm feito parte da realidade conturbada dos Guarani Kaiowá, com Carelli a abordar de forma contundente a tentativa destes grupos em conseguir manter-se nas terras que pertenceram aos seus antepassados.

O documentário coloca ainda em contraste duas formas muito distintas de encarar a propriedade: de um lado temos os índios, com um sentimento de pertença ao território onde estão enterrados os seus mortos e a convicção religiosa de que a Terra pertence ao criador para o usufruto de todos; do outro temos a lógica de domínio privado. Também os ruralistas têm o seu espaço no documentário, sobretudo quando ficamos perante o Leilão da Resistência, uma espécie de espetáculo dos horrores que nem precisa de narração em off a acompanhar os discursos para despertar indignação. Diga-se que os discursos de alguns políticos, inseridos em alguns trechos do documentário, também não ajudam à nossa crença na Humanidade, com Carelli a explanar uma situação deveras intrincada e problemática. No final de “Martírio” sentimos uma mescla de impotência e revolta, bem como um certa comoção e indignação, com o realizador a desenvolver um documentário que é incapaz de deixar alguém indiferente.

 

Aníbal Santiago

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