Quarta-feira, 24 Abril

Festival de Veneza: à procura da verdade com as orelhas a arder

É com La Verité de Hirokazu Kore-eda que arranca hoje o mais antigo dos festivais de cinemas mundiais.

Nesta 78ª edição, que decorre de 28 de agosto a 7 de setembro, o Lido enche-se de estrelas que acodem à estreia de muitos filmes que certamente vão dar que falar até aos Oscars, alguns deles que diríamos há um ano improváveis nessa corrida.

Joker é um deles e foi mesmo descrito pelo diretor artístico do certame, Alberto Barbera, como o projeto “mais surpreendente” da competição este ano. Poderá um filme sobre um vilão dos comics agradar o júri presidido pela argentina Lucrecia Martel, ela que andou de candeias às avessas com a Marvel quando foi perspectivada a hipótese de trabalhar em Black Widow? Dificilmente, mas talvez os outros membros do júri, onde se incluem o historiador e crítico Piers Handling, a atriz Stacy Martin, os diretores de fotografia Rodrigo Prieto e Tsukamoto Shinya, e os realizadores Paolo Virzì e Mary Harron, a consigam convencer…

A Verdade

A busca pela verdade no Festival de Veneza não se fica pelo título do filme de abertura, já que nomes como Steven Soderbergh, Roman Polanski e Olivier Assayas levam até ao festival obras baseadas em factos reais: o norte-americano exibe The Laundromat com Meryl Streep às voltas com os “Papéis do Panamá”; já o franco-polaco viaja até à condenação por alta traição de Alfred Dreyfus em 1894 na França com J’Accuse; e Olivier Assayas visita com Wasp Network a Rede Vespa [foto acima], um grupo seleto de agentes secretos cubanos que se infiltrou em organizações anticastristas em Miami e que eventualmente acabou detido nos EUA.

Temos ainda um documentário com a Máfia em destaque (La Mafia non è più quella di Una Volta, de Francesco Maresco) e um registo autobiográfico em torno do fim de um casamento (Marriage Story, de Noah Baumbach) sob a dupla perspetiva dos envolvidos, interpretados por Scarlett Johansson e Adam Driver.

Catorze anos depois da última vez, Portugal está presente na competição ao Leão de Ouro com a Herdade, uma história ficcional em torno de uma família proprietária de um dos maiores latifúndios da Europa, na margem sul do Rio Tejo, mas uma peça artística que faz igualmente um retrato da vida histórica, política, social e financeira do nosso país, entre os anos 40 e os dias de hoje. As expetativas em relação a este filme são tremendas, não só pela presença em competição, mas igualmente por também figurar no Festival de Toronto, e de Alberto Barbera o ter comparado a 1900 de Bernardo Bertolucci.

Nos outros destaques da competição, realce para o aguardado Ad Astra de James Gray, que deveria estar concluído a tempo de Cannes, mas que foi adiado, surgindo agora em terras italianas; a estreia do diretor colombiano Ciro Guerra em filmar em inglês, adaptando ao grande ecrã Waiting For The Barbarians (À Espera dos Bárbaros) de JM Coetzee; o aguardado regresso de Roy Andersson e o seu About Endlessness; a animação de Hong Kong No. 7 Cherry Lane; e a nova colaboração entre Pablo Larraín e Gael Garcia Bernal, intitulado Ema.

As orelhas a arder

Em termos de presença feminina na competição, há apenas dois nomes: a saudita Haifaa Al-Mansour, no seu The Perfect Candidate, segue a carreira de uma mulher que tenta chegar a um cargo político municipal na Arábia Saudita, enquanto a estreante Shannon Murphy centra o seu Babyteeth [foto abaixo] numa rapariga que sofre de cancro.

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Esta escassa presença feminina, foi atacada por várias personalidades, instituições e meios da comunicação social. Melissa Silverstein, autora e fundadora do grupo Mulheres de Hollywood, escreveu no Twitter que Veneza tinha selecionado poucas mulheres e um violador, enquanto Jennifer Kent, que inicialmente estava programada para servir como jurada na corrida ao Leão de Ouro, voltou a destacar a pobre presença feminina, ela que em 2018 tinha sido a única cineasta em competição ao principal prémio.

Grande parte das críticas vêm também da imprensa norte-americana, com o The Hollywood Reporter a lançar mesmo um artigo que implicitamente diz que o festival é completamente surdo perante os gritos lançados pelas campanhas Time’s Up e Mee Too. A escolha para o certame de obras de Polanski e Nate Parker – dois nomes com um passado ligado a agressões sexuais – é vista como escandalosa. “É como se gostassem de ser o último dinossauro em pé“, disse Laura Kaehr, copresidente da Swiss Women’s Audiovisual Network (SWAN) ao THR.

Já a produtora Janine Jackowiski (Toni Erdmann) acrescentou que tem muitas reticências “em celebrar o trabalho de homens que tiveram uma relação problemática com as mulheres“, sublinhando a grande diferença entre os EUA e a Europa: “Você pode ver como é na América, se não jogas dentro das regras, estás fora. Aqui, na Europa, ainda existe a ideia do ‘génio’ a quem é permitido fazer qualquer coisa e que deve ser celebrado por isso.”

Mais Portugal na Orizzonti

A Herdade não é o único filme português que se poderá ver por Veneza durante o festival. Na secção Orizzonti, Leonor Teles apresenta a sua curta-metragem Cães que Ladram aos Pássaros, trabalho sobre a gentrificação que acompanha uma família que é obrigada a sair da sua casa no centro do Porto devido à pressão imobiliária. É o regresso de Leonor Teles depois do premiado em Berlim Balada de um Batráquio e de Terra Franca, estreado no Cinéma du Réel em Paris.

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