Sábado, 18 Maio

Christophe Cognet e a arqueologia das imagens

“À pas aveugles” estreou na Berlinale e é exibido no Indielisboa

Quando tinha 12 ou 13 anos, o francês Christophe Cognet assistiu a “Nuit et Brouillard” (“Noite e Neblina“) de Alain Resnais. O poder daquelas imagens, num claro exercício de memória, deixou-o siderado.  “Tinha descoberto o cinema e os campos de concentração ao mesmo tempo”, contou-nos em entrevista a propósito do seu mais recente filme, “À pas aveugles”, no qual pega em imagens obtidas clandestinamente por vários deportados em campos de concentração nazis para partir para uma análise criteriosa à forma como essas fotografias foram tiradas (ângulos, posições, iluminação), procurando assim também chegar à identidade e história dos seus autores e daqueles que foram fotografados.

A arqueologia das imagens tem, aliás, sido uma constante na sua carreira, destacando-se em 2004 através da visita ao atelier de um pintor deportado para os campos de concentração (“L’Atelier de Boris”). Anos depois, visitou novamente desenhos feitos clandestinamente no campo de Buchenwald (“Quand nos yeux sont fermés”) e em “Parce que j’étais peintre” (2014) investiga obras artísticas produzidas entre 1933 e 1945.

O poder da imagem, “real” ou ficcional, a ética e o seu trabalho de arqueólogo foram os temas chave de uma conversa onde nos confessou que no futuro vai embarcar para o cinema de ficção.

Christophe Cognet| Foto por Emmanuelle Marchadour

O que o fez escolher o poder da imagem e  a memória como foco da sua carreira, quer nos livros, como nos filmes que executou?

Faço parte de uma geração na França em que nos mostravam o “Nuit et Brouillard” (“Noite e Neblina“). Tinha 12 ou 13 anos quando vi o filme do Alain Resnais e para uma criança foi um choque terrível ver aquelas imagens nas ruínas daquele campo de concentração. Deixou-me siderado. Tinha descoberto o cinema e os campos de concentração ao mesmo tempo. De alguma maneira guardei tudo numa espécie de caixa [mental] e disse que voltaria a ela dali a 10 anos. O tempo passou e a ocasião de regressar a isso deu-se quando tinha 30 anos quando encontrei Boris Taslitzky, um francês com 90 anos na época e que foi um dos deportados a Buchenwald e que fez desenhos clandestinos no campo de concentração. Foi assim que tudo começou e de alguma maneira foi graças ao Boris, aos seus desenhos e a todo o trabalho que pude ensaiar completar as imagens chocantes que vira no “Noite e Neblina”. Foi uma forma de sair dessas imagens e as completar com outras. E quando tomei consciência que havia muitos deportados que tinham feito aqueles desenhos achei que seria a oportunidade de ver aqueles campos através do seu olhar, mesmo que fosse, claro, um olhar incompleto. Um olhar que nos permitisse uma outra perceção – mais justa – dos campos que aquelas imagens feitas pelos militares e fotógrafos fizeram em 1945 na libertação dos campos. Eu fiz a minha tese académica em torno de Alain Resnais e qualquer coisa em mim disse-me que não podia ser cineasta se não fizesse algo em torno dessas imagens. 

Já pegou nos desenhos, em pinturas e agora em fotografias para falar dos campos de concentração e dos homens deportados para eles. E no futuro? Vai procurar outros registos, filmes, etc?

Não há registos fílmicos nos campos, mas talvez  existam dos guetos. Por isso, no futuro, a ideia é partir para outro tipo de projetos, nomeadamente de ficção. Ainda é cedo, mas amaria adaptar uma obra de Aharon Appelfeld, um escritor israelita que contou sobre o depois dos campos de concentração. Seria para mim também uma forma de sair da memória daquelas imagens, destas questões, e de entrar noutras.

É interessante que fale da ficção. Crê que o poder de uma imagem documental, dita “real”,  é maior que o de uma imagem de ficção? 

Existe algo nas imagens documentais que de facto é mais forte, mas existe também um poder na ficção que permite contar coisas que não podemos de outra maneira. Por exemplo, nas fotografias que estão no meu filme, há coisas que não vemos, evidentemente. A ficção permite contar essas outras coisas. Por isso, quando um filme de ficção dá um retrato justo do que se passou nos campos de concentração, e quando essas imagens e a mise-en-scéne comportam-se seguindo princípios éticos, não tenho nada contra elas. 

O termo que utilizou, “ética” [da imagem e mise-en-scène], é difícil de circunscrever na ficção. Temos filmes como “A Lista de Schindler” ou o “O Filho de Saul”. Fala de “ética”, mas existe uma linha que realmente separa o que podemos fazer e não fazer?

Não sei se há uma linha, mas há certamente uma zona onde estamos de um lado ou do outro na questão da ética. Em França existe um artigo muito célebre do Jacques Rivette sobre o travelling do filme “Kapò” (1961), caracterizando-o como nojento. É uma ideia que mantive sempre no meu trabalho, ou seja, na maneira de colocar a câmara, no tom que imprimimos e na mise-en-scène – mesmo num filme de ficção – há coisas que se fazem e outras que não se podem fazer. Procurar emoções fáceis, o pathos para dizer as coisas estupidamente e rapidamente, é eticamente errado. Para mim, a sobriedade relativamente a este tipo de assuntos é já uma forma de mostrar princípios éticos. 

À pas aveugles

Li um ensaio sobre o seu livro, escrito por Wilco Versteeg, onde ele fala muito da ética, sendo muito duro com “A Lista de Schindler”, “A Vida é Bela” e “O Filho de Saul”, exprimindo mesmo que são obras de mau gosto que avançam pelas fronteiras da “exploração, sentimentalismo, catarse e iconoclastia”. Pensa como ele?

É complicado. Não sou o Spielberg, mas em “A Lista de Schindler” há certas cenas que são problemáticas. Todos falam, por exemplo, daquela dos duches. Aí, efetivamente, há algo que podemos questionar. A “Lista de Schindler” não é o tipo de cinema que quero fazer (…) Para mim, o Cinema é tempo e espaço. A justeza, a ética, está também no tempo das coisas. Tirar uma fotografia leva o seu tempo. É preciso encontrar o aparelho, a película, carregar, etc, etc. O cinema visita uma experiência humana. No “Filho de Saul” o tempo é contraído ao serviço de uma dramaturgia que vai-nos mover com ela. Com essa contração, o espectador é bombardeado com situações, há sempre um frenesim qualquer. Com isso, perde-se veracidade e justeza. Por exemplo, um historiador contou-me que para queimar um corpo são precisas duas horas. Duas horas! 

Nas fotos do meu filme não há precipitações. As coisas levam o seu tempo e sem isto não temos a perceção real.

E este seu “À pas aveugles” serve como um complemento do seu livro “Eclats – Prises de vue clandestines des camps naziS”, que lançou em 2019?

Já tinha o projeto de filme quando surgiu um editor que o leu e sugeriu que fizéssemos um livro. Escrevi o livro enquanto preparava o filme, até porque é sempre muito longo o processo de financiamento. Escrevi-o durante dois anos, mas na minha ideia ele nunca seria um guião do filme, nem o filme um reflexo do livro. São duas coisas diferentes. 

No livro procurei como através da escrita poderia ver aquelas imagens. Foi uma experiência extraordinária, o forçar-me a descrever as imagens, de dar palavras ao que olhava. Já no filme tentei ter um conhecimento físico dos lugares que as imagens mostram, algo que não podemos fazer na literatura. São assim duas coisas que podem completar a experiência, quer do leitor, quer do espectador.

Considera-se um arqueólogo de imagens?

Sim, sem dúvida. Uma das coisas que guiou-me no filme – e também um pouco no livro – é a ligação entre a Arqueologia e o Cinema, que me parece muito forte. Há qualquer coisa, um gesto do cineasta, particularmente no documentário, que leva-nos à Arqueologia. Foi isso que tentei fazer neste filme.

A arqueologia de uma imagem procura encontrar onde ela foi feita, de que maneira, os ângulos usados, etc. É um trabalho muito preciso e muito minucioso. E quanto mais minucioso, maior conexão e comunicação temos com aqueles que fizeram as imagens e o mundo que elas representam, onde se incluem os que estão expostos nela. Isto é efetivamente um trabalho de arqueologia.

“À pas aveugles”

E crê que são importantes nos dias que correm filmes como o seu, num momento de crescimento da extrema-direita? Le Pen em França e outros líderes na Hungria e Polónia?

Se o meu filme ajudar a combater essas ideias ficarei contente, mas acima de tudo o que me agita é uma questão de perceção dos acontecimentos. Procuro ser muito claro e preciso nas críticas que posso fazer à extrema-direita. Mas, apesar de não nutrir a mínima simpatia pelas ideias de Le Pen, também não a associo aos nazis. Existem certamente graus de distância entre eles. 

Se este filme puder ajudar a ter uma perceção sobre os campos de concentração ficarei contente. Dizendo de outra maneira, não estou atualmente num combate político direto, mas se ele der a imagem do fascismo e do nazismo, seria bom.

E o novo projeto que tem de ficção, quando é que acha que o poderemos ver?

Não sei. Na verdade, tenho dois projetos e o outro até está num estado mais avançado. Mas se tudo correr bem, talvez daqui a 3 anos. Como não sabemos como vamos sair disto, com o Covid e o estado do cinema atual, com ninguém a tomar decisões e muitos filmes à espera de estrear, não me aventuro a adiantar datas.

(texto originalmente escrito em março de 2021)

Notícias