O poder da imagem como exercício de memória e um verdadeiro ato de resistência tem feito parte desde sempre da obra de Christophe Cognet, artista multidisciplinar que há quase 20 anos, em 2004, nos levou numa visita a um atelier carregado dos gritos do século XX e dos horrores nazis através de “L’Atelier de Boris”. 

Anos depois, pegou em desenhos feitos clandestinamente no campo de Buchenwald por artistas deportados no seu “Quand nos yeux sont fermés” e em “Parce que j’étais peintre” (2014) investiga as obras produzidas clandestinamente nos campos nazis entre 1933 e 1945. Antes disso, em 2008, com “Les Rings du Serpent”, para o ARTE, ele estuda outro tipo de imagens, tecendo uma análise ao mundo da vigilância, principalmente à noite, na perspetiva dos seguranças.

Estamos em 2021 e Cognet, após publicar há dois anos “Éclats – Prises de vue clandestines des camps nazis”, onde observa, analisa e dá palavras às fotografias clandestinas tiradas nos campos nazis, complementa esse trabalho com “A Pas Aveugles”, onde num verdadeiro ato de perquirição, rigor, mas também homenagem, viaja por antigos campos de concentração, como Ravensbrück, Dachau e Auschwitz-Birkenau, para sobrepor – muitas vezes – as imagens históricas, tentando perceber e contextualizar, sem prejulgar ou teorizar, o que esses registos têm para nos mostrar e dizer

São imagens variadas, muitas delas que conseguiram ser contrabandeadas para fora dos campos de extermínio, em verdadeiros atos rebuscados de preservação da identidade e de prova do terror do que se passava lá. Das mais generalistas a retratar os detidos em momentos de maior descontração, aos trabalhos em zonas de mato e floresta, passando por uma enfermaria e vítimas de experiências médicas, não esquecendo os crematórios e momentos antes e depois de assassinatos em massa ocorrerem – como as captadas pelo prisioneiro grego Alberto Errera – Cognet analisa criteriosamente a forma como essas fotografias foram tiradas (ângulos, posições, iluminação) e a identidade e história dos autores, o mais preciso e rico possível.

Mas o cineasta vai ainda mais longe na sua tarefa de reconstrução, pondo também em debate nas entrelinhas a velha desconfiança da ideia de representação direta que Claude Lanzmann embandeirou no seu “Shoah”, onde defende a reflexão histórica e confronto do passado através dos testemunhos, em detrimento das chamadas imagens de arquivo. Algo que encontrou resistência nos que defendem a imagem como fonte de conhecimento, principalmente refletida por Georges Didi-Huberman em “Images malgré tout”, o qual certamente serve de âncora para muito do trabalho e pensamento que Cognet executou ao longo dos tempos e particularmente neste seu “A Pas Aveugles”.

No final temos um objeto impactante que mostra também que com o passar dos tempos e novas técnicas de recuperação desses arquivos históricos, a imagem pode ganhar novos detalhes e camadas, acentuando assim que esta não é um mero elemento estático de registo material, mas também capturar e sugerir tudo o que a rodeia.

(crítica originalmente escrita em fevereiro 2021)

Pontuação Geral
Jorge Pereira
a-pas-aveugles-imagem-memoria-e-historiaUm documentário com forte impacto sobre o poder da imagem como exercício de memória