Terça-feira, 16 Abril

Orlando Senna no western da exclusão social


E
mbora tenha lançado poucos filmes, por conta de uma agenda movimentada pela docência e pelo compromisso com a política cinematográfica, Orlando Senna merece um verbete polpudo, cheio de glórias, em qualquer enciclopédia dos grandes artistas do Brasil pelos feitos que encampou na sua gestão à frente da Secretaria do Audiovisual (SAv) do Ministério da Cultura (MinC) no governo de Lula, e pela realização de algumas longas-metragens seminais. Nos anos 1970, ele filmou com Jorge Bodanzky um pilar das estéticas anfíbias (meio documentais, meio ficcionais): “Iracema, uma transa amazônica”, exibido no Festival de Taormina, na Itália, em 1975. Depois, em 1978, fez “Diamante Bruto”, com José Wilker, falando da transformação de um recanto da Bahia. Escreveu múltiplos roteiros de sucesso, como o do musical “A Ópera do Malandro” (1986), e nunca de se descolou da prática documental, fosse como realizador, fosse como gestor público. Mas, aos 80 anos, ele vem surpreendendo o público do 53º Festival de Brasília (realizado parte na TV, via Canal Brasil, parte online, nos canais Globo na web) com um faroeste sobre os traumas fundiários do seu país.

Ecos de Anthony Mann impulsionam à consagração do seu western contemporâneo “Longe do Paraíso”, em competição pelo troféu Candango no Festival de Brasília. Na trama, o pistoleiro Kim (Ícaro Bittencourt) mata um alvo errado, durante o atentado à liderança de um agrupamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e recebe como punição a incumbência de assassinar a líder de um grupo de camponeses. Mas essa nova vítima, Bel (papel da cantora e atriz Emanuelle Araújo), é a sua irmã. Eis que melodrama, ciências políticas e bang-bang misturam-se numa narrativa sociológica e tensa, embalada numa memorável banda sonora de David Tygel – a melhor da sua vasta carreira nesta década. Na entrevista a seguir, Senna fala ao C7nema dos Brasis que descobriu com a câmara ligada.

O seu “Longe do Paraíso” é um “Os Brutos Também Amam” do Nordeste, um faroeste que se articula com o código do nordestern. Parece mais próximo dos faroestes psicológicos do Anthony Mann do que dos spaghettis italianos. Mas o quanto da cartilha do western foi usada de forma consciente por si? O quanto esse tratado sobre os desajustes agrários do Brasil dialoga com as cartilhas do cinema de género?

Uma significativa percentagem das histórias narradas nos faroestes está lastreada em problemas relacionados com a terra, com a posse da terra. A lembrar que esses filmes são todos relacionados com a histórica “marcha para o Oeste”, um processo de expansão territorial posto em prática pelos Estados Unidos logo depois da sua independência. Milhares de pessoas movimentaram-se em direção ao Oeste, e rapidamente, porque quem chegasse primeiro em determinada região se apossava dela. Essa ocupação desordenada, e no meio do nada, gerou muitos conflitos, muita violência. Quando era criança praticamente só via faroestes no cinema de Lençóis, na Chapada Diamantina, onde cresci. A minha brincadeira infantil preferida era a de Mocinho e Bandido. Então é claro que essa influência estava presente quando realizei “Longe do Paraíso”. O meu primeiro trabalho como jornalista foi o de crítico de cinema e entusiasmei-me muito com os faroestes “psicológicos”, os “westerns psicanalíticos” que chegavam nos anos 1950 e 1960. Você acerta quando menciona Anthony Mann, o meu diretor preferido nessa seara, ao lado de George Stevens, por “Shane” (“Os brutos também amam” no Brasil). Não penso no Cowboy, no Samurai e no Cangaceiro apenas como personagens de género. Sempre achei que iam além disso, que eram “pontas de iceberg” culturais, talvez encarnações dramatúrgicas de paixões juvenis. Não sabia como dizer isso e faz pouco tempo, trabalhando na oficina Griô Cibernético, ouvi de uma das participantes, a minha amiga Débora Macedo, que esses guerreiros dos Estados Unidos, Japão e Brasil são “personagens e quimeras ao mesmo tempo”. Talvez quimera seja realmente uma boa palavra para defini-los. Acho uma pena o Brasil fazer poucos filmes de cangaço, deveria fazer muito mais. A propósito, vejam a obra prima de Geraldo Sarno: “Sertânia”.

Orlando Senna

De que maneira a sua experiência documental esculpe aquele universo ficcional de um Django baiano, o Kim, e de sua contratante, que parece uma Lady Macbeth? Qual é a dimensão de documentário deste longa tão eivado no faroeste?

Os universos ficcionais não estão muito longe do universo real mas, fora isso, não sinto pegadas da minha experiência documental no filme. Tenho de esclarecer duas coisas. “Longe do Paraíso” é meu único filme que pode ser adjetivado como ficção ou, mais ousadamente, ou mais falsamente, “pura ficção”.

Segunda coisa, com exceção de alguns documentários curtos que realizei no fim da adolescência, tudo que fiz foi “docoficção”, ou filmes híbridos como são chamados atualmente. Ou seja, a ficção sempre esteve presente neles. Isso que estou a dizer é só um esforço para ser compreendido, porque, para mim, desde a infância, realidade e imaginário convivem no mesmo universo, na mesma dimensão. A vida é dual. Só um pouco de Bertolt Brecht: a personagem é ficção, o ator que o encarna é real, os dois ocupam o mesmo espaço (não é uma citação de Brecht, é uma ilação de sua ideia de distanciamento).

 O seu “Diamante Bruto” também falava de um povoado sacudido pelo regresso de alguém que é parte daquele mundo. E também tinha um matador de aluguel. Quais são as descobertas que vem deste regresso a um contexto temático? Quais são os Brasis desses seus dois filmes, que são irmãos?

 “Diamante Bruto” foi… posso dizer que continua a ser… uma experiência visceral para mim. Um filme realizado na minha comunidade e realmente coletivo, gregário. Tive toda a comunidade participando da realização. E teve um “plus” inesperado que foi a mudança dessa comunidade, inclusive económica, saindo de uma decadente extração de diamantes e entrando na economia de serviços, no turismo, a partir do filme. É uma história de amor. Amor mal sucedido mas uma história de amor. “Longe do Paraíso” é uma história de ódio, de desamor. Vejo o Brasil atual nessa dualidade, parte dele pedindo amor, parte dele odiando. É como você diz, o Brasil é como dois países no mesmo espaço.

 Você teve uma passagem memorável pela Secretaria do Audiovisual (SAv), durante o governo Lula, num período em que fomentou a produção de vários projetos, em especial de documentários.  O quanto daquela experiência de prática política mudou a sua estética? O quanto de projetos como “Revelando os Brasis” e “DOCTV” estão no seu cinema, estão em Kim?  

O programa “Revelando os Brasis” é dedicado a pessoas que nunca fizeram cinema, em municípios com até 20 mil habitantes. Foi inspirado na feitura de “Diamante bruto”. Pessoas de distintas idades receberam treinamento durante a preparação do filme e atuaram como assistentes ou segundos assistentes informais de direção, produção, fotografia, som. “Revelando os Brasis” é realizado até hoje, com a coordenação do Instituto Marlin Azul e de Beatriz Lindenberg, e já deve ter um acervo de uns 300 filmes. A intenção era e é democratizar o acesso à formação e aos meios de produção audiovisual. O programa DOCTV nasceu de uma estratégia de produção que permite a um canal de televisão realizar um documentário e receber 20 ou 30 documentários para a sua grade [grelha]. Um negócio da China, como se diz. Este modelo espalhou-se por várias latitudes, além do DOCTV Brasil foram realizados o DOCTV Ibero-América, o DOCTV Colômbia, o DOCTV CPLP (países de língua portuguesa). Mais de 200 documentários foram realizados e destinados a redes públicas de televisão. Mas o programa desapareceu durante o governo Dilma.

Quanto tempo você ficou na SAv?

Cinco anos, de 2003 a 2007.

Onde a longa-metragem que te leva à competição de Brasília foi rodada e em quanto tempo? A sua opção por planos-sequências foi estruturada na montagem. Ou antes dela?  

As gravações foram feitas em Salvador e na Chapada Diamantina, principalmente nas cidades de Mucugê e Lençóis, além de seus entornos. Filmamos durante cinco semanas, intensivamente. Alguns planos-sequências foram pensados na fase de roteiro/desenho de produção, como a primeira conversa de Kim e Bel numa mesa. Mas a maioria foi concebida durante as filmagens.

O filme abre com um relevante panorama do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Como foi a relação com o movimento na feitura do filme?

Uma relação carinhosa. O nosso plano era montar um acampamento do MST cenográfico e contratar figurantes. Fomos conversar com o MST sobre o assunto e os sem-terra fizeram outra proposta: as cenas serem feitas em um acampamento de verdade, com seus ocupantes verdadeiros como extras e figurantes. Assim foi feito.

 Você atualmente íntegra a grade da Amazon Prime no Brasil com um belíssimo documentário sobre os recursos hídricos das Américas: “A Idade da Água”. Como você avalia a entrada de uma obra como a sua na seara do streaming?

Avalio como um avanço nos serviços de distribuição e exibição de filmes, séries e outras modalidades audiovisuais. O streaming é uma nova tecnologia, é envio ou fluxo de informações multimédia em redes de computadores, na internet. Sendo uma tecnologia, não é boa ou ruim em si mesma, mas sim no como é utilizada. E por quem. A presença de “Idade da Água” na Amazon Prime é um indicativo que o cinema independente do Brasil e da América Latina pode e deve utilizar essa tecnologia, ampliando os seus horizontes de consumo.

Para o desfecho da programação do Festival de Brasília, a curadoria montada pelo cineasta Silvio Tendler escolheu “Ivan, o TerrirVel”, que ganhou o prémio de melhor documentário em Sitges, Espanha, revivendo as aventuras do realizador Ivan Cardoso pelas estepes do sobrenatural, das artes plásticas e do tropicalismo. A realização é do crítico Mario Abbade. Os vencedores serão conhecidos no dia 21.

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