Quarta-feira, 24 Abril

“Sertânia”: um western metafísico do Brasil

Oráculo das palavras na língua portuguesa professada no Brasil, o dicionário “Aurélio” dá duas definições essenciais ao mundo retratado no “filmaço” “Sertânia“, em cartaz no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Natal: 1) CANGACEIRO: Bandido que agia no interior nordestino, e que andava sempre fortemente armado; 2) JAGUNÇO: Capanga. Há uma interseção histórica entre os dois verbetes, que se tangenciam na longa-metragem do baiano Geraldo Sarno pelas vias da metafísica, numa violência tensa, eivada de ranços políticos e de elementos de um filão narrativo genuinamente brasileiro: “nordesten“.  Nele, alternamos entre os cangaceiros e os jagunços dicionarizados pelo “Aurélio”.

Revelado para o mundo em 1953, após a consagração de “O Cangaceiro“, de Lima Barreto, no Festival de Cannes, esse subgénero do faroeste foi, por anos a fio, talhado como produto do cinema do Brasil para exportação, apoiado na criatividade de gigantes da realização, como Glauber Rocha. O filão parte do emprego das ferramentas do western clássico em uma arena distinta do Monument Valley americano: a vegetação de caatinga assume o seu lugar, subtituindo os pistoleiros rápidos no gatilho pelo que a sociologia das Américas chama de “bandidos sociais” (pistoleiros que agiam na margem oposta da Lei e da lei dos fazendeiros) e rancheiros maus por coronéis do Sertão. Reanimado há um ano com “Bacurau” (prémio do júri em Cannes, em 2019), que levava os seus simbolismos para um futuro bem próximo, essa vertente audiovisual volta agora ao circuito do seu país, com a sua roupagem mais tradicional, porém com uma energia renovada, na ótica de um cineasta que marcou época nos tempos do Cinema Novo com o documentário “Viramundo” (1965), falando sobre fluxos migratórios.

Em “Sertânia“, o octogenário cineasta rearranja as peças do tabuleiro do “nordestern“, criando um faroeste alegórico, ao mesmo tempo tenso e reflexivo, carregado de sociologia. Numa narrativa de avassaladora fotografia em P&B (assinada por Miguel Vassy, de “Breve Miragem de Sol“), Sarno abre um debate sobre os fantasmas de um velho (mas ainda presente) Nordeste. O roteiro leva-nos a um mundo pré Lampião, no qual os cangaceiros são jagunços que frequentam a casa dos coronéis. Quebra-se aí um paradigma de exposição deste universo (transformado em género no Brasil, vide jóias como “Bacurau“), o que leva Vassy a “deixar” estourar luz nas panorâmicas, distorcendo a nossa perceção da geografia e mesmo do quadro humano à nossa volta.

A trama abre com um narrador agonizando. E este vem a ser o protagonista: o cangaceiro Gavião, cujo nome real é Antão – um papel confiado a Vertin Moura. Arrastando-se de dor, Antão relembra o seu histórico de glórias e de desgraças ao lado de um senhor da guerra chamado Jesuíno, o Encourado, vivido por um Julio Adrião em estado de graça, num trabalho de composição capaz de tangenciar várias feridas sociológicas das Américas. Ele é ao mesmo tempo ave de rapina e cordeiro: “Só chego quando não estão me esperando“, diz, ameaçador. Jesuíno é o espelho do pai que Antão perdeu duas décadas antes, na Guerra de Canudos. Mas foi levado de lá e cresceu em São Paulo, onde se tornou soldado, indo, na sequência, para o Cangaço em busca de um chão tão esturricado quanto a sua alma. Jesuíno é a única bênção que a vida lhe ofereceu pois vê no rapaz um escudeiro fiel. Mas em dado momento, digno de um spaghetti western à la I giorni dell’ira” (1967), Antão e ele trombam num choque trágico. A evocação ao faroeste de grandes cineastas italianos, como Sergio Leone, Sergio Corbucci e Tonino Valerii vem não apenas pela dimensão trágica a eles inerente, mas pela caracterização formal dos tiroteiros, estilizados, embora regados a uma adrenalina que o cinema sociológico brasileiro costuma refutar.

Sertânia” é o trabalho mais exuberante de Sarno como diretor desde “Coronel Delmiro Gouveia” (Grande Prémio Coral no Festival de Havana, em 1979). É um espetáculo visual que revive o seu espírito crítico e renova a sua forma. E, na entrevista a seguir, ele sintetiza as suas ideias numa conversa com o C7nema.

De que maneira o mítico, o tempo histórico e o realismo convivem na sua “Sertânia” e o que eles, juntos, revelam sobre o cangaço e sobre a trajetória do dito “banditismo social”?

A minha aproximação desse mundo não vem por esse ângulo: “Sertânia” é uma tragédia, como Ésquilo ou Sófocles. Sou do sertão baiano, que teve muito jagunço. O meu tio mais velho, que foi o primeiro migrante da família, ainda nos anos 1910, contava histórias de que na sua cidade, todos os sábados, ele precisava se trancar em casa, pois chegavam “bandidos” montados a cavalo. Ouvi muitas histórias antigas no processo de construção desse filme, cujo primeiro roteiro é de 2002, então chamado “Gavião, o Cangaceiro Que Perdeu a Cabeça“. Venho de um município que era muito grande. Era algo imenso, que acabou sendo desmembrado em uma dezena de municípios, numa área onde se confrontavam vários ecossistemas. Na vegetação, havia resquícios de geografia de Zona da Mata, de Agreste e de Caatinga. Isso trazia consigo uma variedade de culturas. Lá chegou a ter três salas de cinema. As histórias que colhi reportam a uma tradição oral a que juntei muita leitura sobre o Cangaço, principalmente ligada a livros sobre o que se passou desse fenómeno social da Bahia para cima. Mas quando decido montar essa história, parto da realidade de um cangaceiro ferido. Filmei em Milagres, Brumado e Conquista, num ambiente de “jagunçagem”. Mas quis fugir da imagem clássica do Cangaço, sem sair carregado de citações. Preferi ir ao campo de metafísica, transcendendo o realismo mais factual.

Como foi a construção da luz com Miguel Vassy e que referências, em especial do Expressionismo, estão ali? Existe uma luz digna de “O Gabinete do Dr. Caligari” em cena. O quanto essa luz conversa com a luz natural do Nordeste?

A curadora da Mostra de Tiradentes, Lila Foster, deu uma definição de que gosto muito na apresentação de “Sertânia” lá, em Minas: “imagens flutuantes”. Sinto que é isso, pois cortei o uso do tripé, inspirado por leituras de Bergson e do Deleuze. Li que o universo são imagens e que só precisamos de uma tela para ampará-las.

De que maneira “Sertânia” dialoga com o vocabulário do chamado Nordesten, indo além de lugares comuns e do pastiche? Cabe um ideal de heroísmo nesse filão?

Quando estou fabulando, a partir de Antão e de Jesuíno, estou querendo falar sobre o herói brasileiro. Por baixo desses heróis, tenho toda uma influência da literatura de Guimarães Rosa e de Mário de Andrade.  

Qual é a dimensão da palavra no seu cinema?

Os meus filmes sempre têm narração. “Coronel Delmiro Gouveia“, por exemplo, começa e termina com depoimentos documentais. Acho uma bobagem quando se referem à narração de “Sertânia” como sendo autoritária. Não é. O filme busca a transcendência.A narração é fruto da minha formação literária como leitor, mas penso em imagens. Estou entre Eisenstein e Vertov. No Nordeste, o cantador é um narrador, que gravita entre o improviso e o imprevisto, como os aedos (os rapsodos) gregos.

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