Terça-feira, 16 Abril

Lav Diaz : “O meu cinema testemunha a luta das Filipinas”

Ímã vivo de prémios e de debates sobre os fardos políticos da Ásia no exorcismo dos assombro colonial, Lav(rente Indico) Diaz vem construindo um raciocínio filosófico em forma de cinema para poder pensar (e desestruturar) o uso simbólico do Tempo na arte. Famoso por filmes de duração quilométrica (onde cada segundo é poesia), o filipino de 61 anos foi laureado na seção Orizzonti do Festival de Veneza, no dia 12 de setembro, com o troféu de melhor realização, conquistado por “Genus, Pan” (“Lahi, Hayop”). É um exercício de autor enxuto – são “só” 157 minutos – para quem foi premiado na Berlinale de 2016 por uma loooooooooonga-metragem de oito horas: “A Lullaby to the Sorrowful Mystery” (Canção Para um Doloroso Mistério). Naquele mesmo ano, abocanhou o Leão de Ouro por “The Woman Who Left” (A Mulher Que Se Foi), de três horas e 46 minutos. O seu novo trabalho, feito com a maestria habitual da fotografia em preto e branco faz uma analogia entre os seres humanos e os animais, debatendo uma certa prosopopeia existencialista a partir de casos de submissão.

Na entrevista a seguir, Lav Diaz compartilha a sua filosofia com o C7nema.

O que o preto e branco simboliza como expressão estética de representação do real e como um gesto político contrário à natureza de espectáculo do cinema comercial?


Este é um discurso bastante amplo que pode levar a muitas direções. Tento apenas torná-lo fluído livremente, fazendo dele um fluxo de consciência que faça sentido. Vou começar com esta premissa: preto e branco não é a cor da vida (ou, para tantos, não é a cor dos filmes). Considerem essa linha de pensamento um eufemismo e considerem a minha aceitação de não compreender de todo a vida (ou, os filmes).

Mas então, qual é a cor da vida (ou, do cinema)? Através do prisma dos olhos humanos, há uma miríade de matizes, claro, com base no que se vê imediatamente, com a ajuda dos chiaroscuros naturais da Terra. Mas, dependendo também do estado dos olhos, a menos que se tenha um prisma de escuridão, o invisível toma uma medida dialética mais profunda. Ela guia, guisa e olha. É certo que nunca procurei realmente formular um ponto de vista e um enquadramento teórico – e não tenho qualquer intenção de o fazer, e não estou a copiar Jean-Luc Godard sobre isto, pois ele tinha jurado ódio profundo às teorias cinematográficas – sobre o porquê de eu gostar tanto de preto e branco. O que eu tenho é realmente uma profunda ligação natural com a forma de crescer a ver muito cinema em preto e branco. É uma verdadeira relação, um verdadeiro amor pela forma. Considero-me inerentemente parte do universo preto e branco do cinema. É aí que eu quero estar. Isso poderia ter um efeito subliminar sobre o porquê de eu tomar sempre o modelo dos olhos cegos sempre que crio cinema, quer seja a preto e branco ou a cores.

O meu princípio durante o processo é que não sei nada, o que é razão suficiente para continuar a sondar esta chamada existência de uma forma aberta. Entendo que um elemento essencial da criação é a essência da descoberta. Assim, a ironia do cinema tomar o prisma da escuridão para poder ver assume a forma de uma busca, estética ou não. O preto e branco subverte noções convencionais de percepção. Nele, o irreal torna-se real; e o real se torna relativo e pode até mesmo se aproximar da verdade. O preto e branco nega facilmente o espectáculo e o fascínio da cor e do artifício, e, só nesse contexto, torna-se político.

O que representa o tempo como personagem e como uma experiência sensível para “Genus, Pan”?

Se me permitem, por favor, inventarei um termo, ou termos, apenas para aderir ao infinito do espaço do tempo, subterrâneo ou galáctico, quer na consciência do homem, no seu subconsciente, quer no seu inconsciente. Para começar, para o filme “Genus, Pan”, temos um tempo marginalizado, suponho eu? Pode tomar a forma de uma figura de linguagem. O tempo marginalizado é um tempo representativo de um meio que tem uma aparência de invisibilidade, uma estrutura opressiva, onde existem elementos avassaladores de impotência e de iniquidade. Portanto, este é talvez outro termo adequado – tempo oprimido. É um tempo invisível, e não totalmente perdido, e é atrofiado por forças que retrocedem o progresso humano.

As personagens de “Genus, Pan” são do setor mais marginalizado da sociedade filipina. Eles representam os habitantes invisíveis que vivem em esferas e reinos esquecidos, como provas vivas de um sistema muito negligente e de uma cultura muito deslocada. Na sua essência, espelham um tempo marginalizado e esquecido. Do mesmo modo, a maioria das minhas obras tem atributos inerentes ao tempo histórico. O meu cinema não pode escapar a um envolvimento com a esfera transcorrida, o chamado passado. Portanto, há uma justaposição de tempo histórico, tempo marginalizado e tempo oprimido no filme.

Aqui, em “Genus, Pan”, mais uma vez, existem os diferentes reinos do passado – a era pré-colonial, os dois períodos coloniais (Espanha e EUA), a ocupação japonesa, e cataclismos internos provocados pelos próprios filipinos – a serem discutidos na linguagem grosseira e inadequada dos habitantes marginalizados, e, no fundo, o discurso do passado tornou-se de facto o maior ator. 

Qual seria a realidade das Filipinas retratada nos seus filmes?

Considere os meus filmes como meros discursos (histórias), orações (poemas) e aspirações (hinos) para as Filipinas. Colocá-los nesses domínios é um modo mais fácil para a classificação do meu trabalho sobre a realidade das Filipinas.

O meu ónus é simplesmente enquadrar, ou reenquadrar, a experiência filipina ou as chamadas realidades filipinas com o entendimento de que a nossa narrativa, imagem e identidade são moldadas por uma matriz, um meio e uma perspectiva unicamente filipinos. Assim, de certa forma, o meu cinema age como um gravador, um codificador e um repórter da história filipina e, ao fazê-lo, torna-se uma testemunha da vida do filipino. O meu cinema testemunha a luta das Filipinas, um país há muito consumido por toda uma gama de desgraças culturais, que passam por traços da colonização, ditadura, populismo, feudalismo e imperialismo.

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