Sábado, 20 Abril

Agnès Jaoui: “em França é cada vez mais difícil financiarem cinema independente e de autor”

Agnès Jaoui está de volta como argumentista, atriz e realizadora neste Na Praça Pública, uma comédia cáustica onde a meias com Jean-Pierre Bacri regressa à crítica social entre mundos que se opõem: patrões e proletários, ideais da esquerda caviar e cínicos de direita, jovens e velhos e novas e velhas formas de entretenimento

Um trabalho que segue a linha de alguns dos seus maiores sucessos, sejam eles O Gosto dos Outros ou Olhem Para Mim, mas com uma abordagem atualizada aos novos tempos. Foi disso que falamos com Jaoui, que marcou presença em Lisboa para apresentar o seu filme na capital e em Almada.

É curioso que o seu filme é muito cáustico relativamente às diferenças entre classes sociais em França. E logo numa das primeiras cenas, vemos Bacri como o apresentador Castro [um esquerdista em jovem e de direita depois dos 40 anos] a dançar ao som de La Rage da marselhesa Keny Arkana, uma rapper conhecida por defender posições altermundialistas e anticapitalistas…

(risos) Sim, mas não pensei nisso [altermundialismo ou anticapitalismo]. Acima de tudo escolhi a música pelo ritmo. Ela tem uma força… uma…

… Uma “raiva”…

Sim, uma raiva. Essa música transmite essa sensação, uma violência e raiva que uma grande parte da população transmite, em que tudo é exacerbado. De alguém que quando era jovem partilhava ideias de esquerda mas que agora mudou, mas mantém o gosto musical. São as contradições humanas.

E houve alguém que a tenha inspirado particularmente para esta personagem do Castro?

Muita gente. Há quatro ou cinco apresentadores em voga que encarnam um certo cinismo e assumem uma forma politicamente incorrecta de estar. Que têm um modo de ser por vezes insolente. Isso divertiu-nos bastante na sua construção.

E como é o seu método de trabalho com o Bacri na escrita do guião?

Fazemos sempre as coisas juntas, escrevemos conjuntamente das 15h às 19h com muitos cadernos, canetas…


Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri

Um método da velha guarda….

Completamente. Falamos muito, eu anoto as coisas, mais do que ele, especialmente em torno das personagens e do tema. Somos o mais precisos possíveis e assim montamos os diálogos…

Existe também uma forte crítica à tecnologia de hoje em dia, as redes sociais, a cultura das selfies, os youtubers… Não lhe agrada essa cultura?

Não diria que não gosto, e diria mesmo que essa cultura trouxe coisas formidáveis, geniais mesmo, como a democratização do acesso de toda a gente a elas. Nomeadamente à cultura das celebridades – que está presente no filme. Acho isso interessante, pois temos conhecido jovens de grande valor que saíram dessa cultura.

Mas como todos os progressos, existe um lado de regressão enorme, embora ainda não tenhamos capacidade de medir isso porque são tecnologias muito recentes. É uma revolução tecnológica, como foi a revolução industrial, que gera igualmente uma sensação de exclusão em alguns…

E acaba por ser um vídeo e as “partilhas” que “salvam” o Castro no final…

Precisamente e é aí que vemos a absurdidade de tudo. Hoje em dia é mais dificil mentir [está tudo filmado]. Nós tivemos a Primavera Árabe a mover-se por causa dessa troca de vídeos e mensagens. O progresso incrível que essas tecnologias trouxeram está aí, mas também temos as “fake [news]” e podemos responder à mesma velocidade a elas. E às vezes nem sabemos já bem o que é “fake” ou “fake fake”. Por isso, manipulamos a realidade com um poderio ainda maior de propagação. Tudo isto, de certa maneira, é absurdo.

Há aqui algumas personagens que certamente são inspiradas em alguém que conhece. Por exemplo, o Pavel, o imigrante integrado que tem problemas em ajudar outros imigrantes…

Sim e se pensarmos bem ele tem uma lógica. Quando entramos num autocarro cheio, quando finalmente conseguimos entrar, estamos felizes de estar nele e não nos interessamos mais se outra pessoa não consegue entrar. Você salva-se e pronto.

E sabemos bem que se um imigrante tem um comportamento errado, todos os imigrantes vão apanhar por tabela. Este pensamento, claro, é absurdo, mas se pensarmos bem segue uma certa lógica.

De certa maneira é como a minha personagem no filme, que representa de certa forma uma esquerda um pouco ingénua, até ultrapassada. E note que continuo a nutrir simpatia por essa esquerda, mesmo que ela seja ingénua.

A sua personagem tem, aliás, semelhanças com aquela que interpreta no filme As Boas Intenções

(risos) Sim, é verdade. Quando estava a escrever o guião foi antes das filmagens desse filme e cheguei a falar com o realizador e com a argumentista dessa fita e falei do meu. Sim, é uma personagem diferente mas tem muitas semelhanças…

E a personagem do vizinho que não está nada agradado com a festa, é alguém que mostra a dicotomia entre os parisienses e as pessoas do campo?

Sim e mostra esse ressentimento da província para com Paris. E o desprezo de Paris pela província.

A França é muito centralizada em Paris, e histórias e conflitos como o que vemos no filme são muito comuns. E quando os Coletes Amarelos chegaram a Paris e falaram, eu disse: “é exatamente o discurso do agricultor do filme“. Eles falavam das elites, de como não são compreendidos. Deveria haver mais respeito para que não se sintam abandonados. (…) Nós escrevemos o guião antes das eleições e antes de Macron vencer, com a nossa preocupação em Le Pen, mas sabíamos e sabemos que a situação em França e na Europa é tensa.

Mas no fim temos um toque romântico, pois assistimos a duas pessoas de origens diferentes a unirem-se. Gosta desse romantismo?

Sim, muita gente disse que o filme é negro, mas eu queria igualmente pessoas com capacidade de mudar, de crescer…

Pessoas com esperança e não confinadas ao fatalismo e pragmatismo….

Exato, pessoas pessimistas-otimistas…


Léa Drucker e Agnès Jaoui

Sei que inicialmente pensou em ter o papel da produtora que convida todos para a festa. Porque optou por não fazer esse papel e deixou-o para a Léa Drucker?

Não sei ao certo, acho que foi algo que se impôs. Normalmente, faço as personagens negativas e desta vez quis alguém mais positivo. Mas não foi algo verdadeiramente consciente, este desejo de agora ser gentil. (risos)

E tem novos projetos em desenvolvimento?

Sim, vou recomeçar a tournée de espetáculos pelas salas francesas. Tenho também alguns projetos no cinema, mas nada ainda assinado. E tenho outras coisas que escrevi com o Jean-Pierre Bacri.

Existe uma grande diferença entre a Agnès Jaoui de O Gosto dos Outros para a Agnès Jaoui de Na Praça Pública?

(pensa profundamente no assunto)… Não sei mesmo, estou a tentar imaginar como era e o que sou agora. Espero que tenha evoluído, mas não consigo lhe dizer em quê, ou se sim ou não.

Pensando no filme e na tecnologia, o que tem a dizer sobre as novas plataformas de streaming, como a Netflix, a Amazon… Acha que são boas para autores como a Agnès, ou são más para o cinema?

Para o Cinema acho que não é bom, mas para quem o pratica – e em França é cada vez mais difícil financiamento para cinema independente e de autor – é positivo. Atores que não conhecemos saíram daí. Eu vou muito ao cinema e ao teatro, mas sou também uma consumidora de séries. O mundo muda e não vejo tudo como negativo. Existe uma produção local que se reaviva. Penso por exemplo no cinema espanhol, que estava morto e que renasce agora também graças ao Netflix. Na Dinamarca e na Suécia igual. Temos de proteger, em todo o lado, a produção nacional e internacionaliza-la para que nos conheçamos melhor. A Europa tem de fazer isso…

E já pensou, por exemplo, em pegar numa das personagens dos seus filmes, não necessariamente no Na Praça Pública, mas dar-lhe vida em série?

Sim, é possível.

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