Quinta-feira, 9 Maio

Wang Xiaoshuai abana Berlinale com “Above the Dust”

Já por três vezes premiado na Berlinale, todas elas com o Urso de Prata (“Beijing Bicycle“; “Left Right“; e “So Long, My Son“) volta a abanar o certame, não apenas por tocar em temas tabus no seu país, como o direito à propriedade privada, mas igualmente por exibir o seu filme na ausência de aprovação das autoridades da China continental.

No filme, acompanhamos três gerações de uma família: avô, pai e neto, todos eles a darem os últimos passos no modo de vida daquilo que são hoje: habitantes de uma ruralidade em extinção, numa terra que já possuíram, mas agora propriedade do Estado. 

À beira da morte, após uma violenta queda que lhe fraturou uma perna enquanto escavava ao redor de onde vivem, o avô serve de elo de ligação com o neto através de um sonho, onde lhe diz que no terreno em volta da habitação que sempre conheceram pode estar um tesouro escondido. Falando de posse privada e do desaparecimento da população rural, que vai implicar a morte das terras rurais, que ficam sem quem trate delas, Wang Xiaoshuai contribui para uma discussão que já há dois anos mostrou força na Berlinale através do filme “Return to Dust”. 

Estivemos à conversa com o cineasta em Berlim, o qual nos falou mais em particular do seu filme e de uma carreira na 7ª Arte já com  4 décadas.

O filme é inspirado num pequeno conto. O que lhe atraiu nele e como saltou dessa curta história para uma longa-metragem? 

Queria falar sobre estes temas, mas não estava a encontrar uma porta de entrada para eles. Por isso, usei o conto que serve de inspiração para o filme para avançar. É uma história sobre um rapaz que sonha com o avô. O facto de ser um sonho era uma boa oportunidade para mim, pois o mundo dos sonhos não tem barreiras, deixando-me mais livre para explorar os temas que abordo.

A questão da propriedade, da terra e a mudança das pessoas das áreas rurais para as urbanas tem sido muito explorado pelo cinema chinês que chega ao Festival de Berlim. Como vê esse interesse pelo tema por parte dos autores chineses?

O tema da propriedade e a mudança dos donos da terra são um tópico muito quente na China contemporânea. Especialmente para os camponeses. Em particular a questão do povo e a posse das terras. Antes da revolução cultural, os camponeses tinham o direito a possuir terras. Com a revolução, isso foi retirado. Não há terras privadas. O problema é: quem trata dessas terras? 

A China pretende desenvolver as cidades e precisa de pessoas para o mercado de trabalho. Como não podem possuir terras, e não retirando delas mais proveito, torna-se pouco interessante para as pessoas ficarem nas áreas rurais. Saindo dessas zonas, as terras – que são do estado – ficam ao abandono. Quem trata delas?

O que aparece no rosto da China atual é a face do desenvolvimento, mas na realidade o que as pessoas têm em relação a isso é um sentimento de insegurança. Sem terra, não têm onde se agarrar. Não possuem nada. Absolutamente nada.. Elas precisam de uma segurança. Com isto, as cidades tornaram-se uma fábrica de dinheiro do império e as zonas rurais um vazio.

O seu cinema está sempre polvilhado por crianças e adolescentes. Como desenvolveu a personagem da criança que vemos em cena e o seu desejo de posse, primeiro de uma bisnaga e depois de uma moeda de prata?

A criança que vemos em cena está sempre em transformação e procura encontrar ela mesmo o seu caminho pela vida. Nessa busca de aceitação por parte dos amigos, de reconhecimento, ele precisa possuir algo que atraia a sua atenção, ou seja, essas tais coisas (bisnaga, moeda de prata). Curiosamente, quando ele tem realmente essas coisas e mostra aos amigos, eles não ligam, deixando-o ainda com menos confiança. 

Na China, as crianças e adolescentes usam as suas coisas para mostrar o que possuem algo e têm o poder de atrair amizades e relações. Na idade adulta, os brinquedos são substituídos pelo dinheiro, que serve para mostrar relevância perante os outros.

Com quatro décadas de carreira, como escolhe atualmente os projetos que filma? Existe uma intuição em si ou algum tipo de plano?

Não tenho um plano, ou pelo menos um plano completo, sobre os filmes e temáticas que quero abordar. Como já estou a envelhecer, observo com maior atenção todas as mudanças da sociedade. Reparo que a sociedade cada vez mais perde as crenças, tornando-se assim mais vazia, e reflito isso nos filmes que escolho assinar.

Nessas mudanças na sociedade, o cinema foi também levado por elas. Como vê as transformações da 7ª Arte nos últimos anos?

As mudanças no cinema são inevitáveis e ninguém as consegue travar. O celuloide transformou-se em digital. E os vídeos tornaram-se cada vez mais curtos. E até temos IA a trabalhar no cinema. Não conseguimos controlar ou parar isto. Nem sabemos onde tudo vai parar. Na verdade, estamos perante um final em aberto. Sou do tempo do cinema tradicional e vou continuar a lutar para manter essa tradição.

E numa indústria de cinema chinesa, cada vez com maior força e impacto, onde se insere? Qual é o seu espaço?

A indústria do cinema na China está muito bem atualmente. Cada vez há mais espectadores e isso é muito bom. Porém, executo filmes com maior inclinação social e ideias individualistas neles. Por isso, a minha posição na indústria é muito difícil. Estou numa porção muito pequena dessa indústria, no terreno dos autores, mas esta porção é muito necessária nesta indústria como um todo.

Acredito que tenho de preservar a minha forma tradicional de filmar, ainda que veja muitos a ajustarem o seu cinema de forma a serem acomodados por essa indústria.

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