Quinta-feira, 9 Maio

Com a vitalidade de sempre, Ruth Beckermann volta a conquistar a atenção da Berlinale

Quase a entrar nas seis décadas de carreira, a austríaca Ruth Beckermann continua a mostrar uma vitalidade estonteante. Dois anos após lançar na Berlinale o fascinante “Mutzenbacher”, a realizadora de filmes como “Paper Bridge” e “Homemad(e)” regressou à capital germânica para abrir e competir na secção Encounters. E esse regresso é com “Favoriten”, um objeto que se poderia encarar na forma de cinema direto, não fosse Beckerman “intervir” ao munir os jovens alunos que acompanha com câmaras de smartphone.

Acompanhando a partir de 2020 os alunos da maior escola primária de Viena, Beckerman captura toda a inocência, mas também o crescimento intelectual e emocional dos pequenos que são acompanhados sempre por uma professora durante esse período. O resultado é fascinante, digno de ser esmiuçado um pouco na entrevista que fizemos em Berlim à cineasta que ainda há um par de anos fez parte do júri do Doclisboa.

Com a carreira vasta que têm, como escolhe os projetos para os quais avança? Porque escolheu fazer o “Favoriten”?

As ideias vão e vêm. Algumas desaparecem, outras permanecem em mim. Este projeto nasceu por causa do Covid. Não podia filmar fora do meu país e não pensava que fosse afetar as escolas. Mas depois houve tantos confinamentos, até em escolas, o que dificultou bastante o nosso processo de filmagens. Mas ainda foi possível filmar, como vemos. Esta foi a razão pragmática para filmar o “Favoriten””. Por outro lado, sou alguém muito interessada nos miúdos desta idade, ou seja, quando estão entre o serem bebés e adolescentes. Estes miúdos têm imenso potencial, ainda os conseguimos moldar e confrontá-los com inúmeras coisas, devido à sua curiosidade nata. Hoje em dia, nas cidades europeias, é fácil encontrar turmas com crianças de todo o lado. Eles vão ser o nosso futuro, Os habitantes das nossas cidades. Por isso, devia-se dar mais atenção a eles.

Fez algum casting de escolas ou de turmas que queria filmar? Porque escolheu a escola em questão e aquela turma como objeto do seu filme?

Visitamos um par de escolas, mas o local onde esta escola se situa em Viena é especial devido à presença de muitos cidadãos de origem turca e de todos os cantos do mundo. Na verdade, este estabelecimento de ensino é o maior de Viena. A verdadeira razão para a escolha desta escola e classe foi a professora. Achei-a muito talentosa, Não conhecíamos as crianças antes de começar a filmá-las.

E a sua lente mantém-se sempre na turma. Nunca vemos, por exemplo, uma conversa ou discussão entre professores? Foi uma escolha pessoal?

Filmamos algumas dessas conversas. A professora com o diretor da escola, os pais, etc. Mas decidi focar-me na turma e nas aulas, afastando isso na mesa de montagem. Um filme não é um artigo de jornal, ou parecido, 

Ilkay Idiskut,, a professora de “Favoriten“, junta-se a Ruth Beckerman no palco da Berlinale

Nas aulas, vemos conversas sobre religião. Embora seja possível os país não quererem que os seus filhos abordem esse tema, acha que a religião deveria fazer parte do objeto escolar?

Sou contra, mas a Áustria é um país católico e existe um acordo assinado com o Vaticano sobre essa questão. As escolas têm de ter aulas de religião e os miúdos estão automaticamente inscritos nelas. Só se os pais não quiserem e expuseram esse desejo, os miúdos podem não participar nessas aulas. Se uns pais forem passivos no que diz respeito ao programa escolar dos filhos, os miúdos são forçados a irem a essas aulas.

Nunca sai das aulas e vão surgindo temas e temas que eles abordam. Nada foi ensaiado, mas tinha um “guião” do programa de ensino, sabendo assim que tipo de temas ia filmar?

Tínhamos uma noção dos temas que iam abordar porque perguntávamos. Quando vão falar de sexo, do corpo, etc. Sabiamos de muita coisa de antemão. Por exemplo, durante dois meses filmamos os alunos a falarem sobre a cidade de Viena. Não metemos essas conversas no filme, pois não achamos interessante. Quando a guerra na Ucrânia avançou, a professora decidiu pessoalmente que deveria falar do assunto, até porque eles mostraram algum medo e confusão.

A câmara tem um poder onde quer que esteja, pois condiciona o “real”, ou seja, se alguém sabe que está a ser filmado, pode alterar o seu comportamento “normal” e “atuar”. Sentiu isso com os miúdos?

Nem por isso. Bem, talvez no início, mas depois da nossa presença permanente, a câmara tornou-se algo habitual, parte do dia normal. 

Qual o maior desafio que encontrou na produção deste filme?

Bem, o voltar à escola (risos). Admiro muito estes miúdos que ficam sentados horas e horas. No meu tempo, numa escola básica, tínhamos 3 ou 4 horas de aulas. Estes miúdos passam o dia na escola. E não tínhamos estes testes e exames. Eles têm muito medo quando fazem o primeiro teste.

Favoriten

E a ideia de filmar os miúdos daquele jeito observacional, de cinema direto, sempre esteve na sua mente desde o início ou pensou em algo mais concetual como o seu último filme?

O “Mutzenbacher” era muito conceptual. Escolhi os sets, o sofá, a posição da câmara no tripé. Era um filme completamente diferente deste que é muito mais próximo do cinema direto. Eu não podia intervir muito. Na verdade não é cinema direto puro, pois a certo ponto decidi dar aos miúdos smartphones para eles se filmarem. Estava muito curiosa com o que iam filmar. O “Favoriten” é muito menos formal que o “Mutzenbacher“. Gosto de variar na forma. Há pessoas que gostam de se repetir, mas esse não é o meu jeito.

Normalmente, quando os cineastas filmam crianças, pensam no futuro voltar a fazê-lo, numa espécie de continuação. Pensa fazer isso também?

Claro (risos). Neste momento eles já estão espalhados por escolas diferentes e tenho curiosidade em ver como estão no próximo outono, quando lhes mostrarmos o filme. Os miúdos desta idade mudam imenso em pouco tempo. Talvez até se sentem embaraçados em se ver neste filme.Mas sim, seria interessante filmar alguns deles daqui a uns anos. Vamos ver se ainda estou por cá (risos). 

E já está a trabalhar num novo projeto?

Sim, mas não quero falar sobre isso. Talvez fale quando estiver na montagem (risos).

Quando filma, pensa ainda em cinema ou já equaciona o streaming?

Só penso em cinema. Eu não tenho redes sociais, nem uso streaming. É demasiado para mim, Vejo filmes no cinema e leio livros. Isso chega…

E o que sente quando alguém vê um filme seu no computador ou smartphone?

É horrível. Não gosto. Quero ter o feedback das pessoas que viram o filme no cinema.

O cinema está a mudar, a crítica e o jornalismo também. As redes sociais cada vez mais ganham adeptos. Tudo está a mudar. Estas mudanças têm afetado o seu cinema?

Não, mas afetam a minha vida. Nas redes sociais está a decorrer uma guerra cultural. Circula muito ódio. Ódio político. Acontecem horrores atualmente nas redes sociais e estou muito feliz de não andar por elas. A forma que se usa a digitalização e a internet mudou completamente a nossa vida, mas nem sempre para melhor. Tenho um smartphone, pois facilita-me muito a minha vida, mas agora tudo também acontece e chega até nós de forma muito rápida. As pessoas falam contigo e tens de responder imediatamente. É tudo no imediato.

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