Quinta-feira, 9 Maio

Entrevista com a cineasta Sevinaz Evdike

Sevinaz Evidke (1992-) é uma cineasta curda que nasceu em Serekaniye, região de Rojava, Norte da Síria, e atualmente vive refugiada em Derik, cerca de 50km de Serekaniye. Ajudou a criar o Rojava Film Commune, em 2015, colaborou com ações de formação em cinema para jovens locais e com o Festival Internacional de Cinema de Rojava. Estudou realização cinematográfica na Cigerxwin Academy of Diyarbakir – Turquia. Em 2018, realizou – na cidade de Raqqa (antiga capital do autoproclamado Estado Islâmico na Síria) – a sua primeira curta-metragem Home, a qual reflete os traumas da guerra na Síria. Desde este ano de 2023, faz parte do coletivo feminino de cinema nomeado @Kolektiva_Kezi, inspirado na auto-gestão multicultural e político-democrática do Norte e Leste da Síria. O Kezi hoje está localizado na cidade de Qamishli, cerca de 90 km de Serekaniye e é um coletivo que pretende potencializar a força das mulheres curdas do e através do cinema. Deixo aqui uma breve e recente conversa de Sevinaz sobre o Kolektiva Kezi e o filme The Wedding Parade (Berbu,2022), a sua primeira longa-metragem produzida pelo Rojava Film Commune. O filme retrata as consequências da guerra na Síria na vida das pessoas curdas, em especial, na vida de três jovens mulheres de Serekaniye. Uma docuficção autobiográfica, premiada como Melhor Filme na Secção Travessias do Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival.

Li em algum sítio Web que estudaste realização cinematográfica na Turquia. Mas pergunto-me, como e quando exatamente o cinema entrou na tua vida?

Venho de uma família curda politicamente de esquerda. O meu pai estava sempre ausente de casa porque era procurado pelo Regime Sírio. As ações políticas do meu pai eram voltadas, principalmente, para que o povo curdo tivesse direitos culturais e linguísticos. E, por isso, ele sempre se certificava que falássemos, escrevêssemos e lêssemos em curdo, e se certificava que escutássemos música curda (na Plataforma Qubadi), e sempre que havia um novo filme curdo de Yilmaz Guney queria que o víssemos. Mesmo que isso significasse trazer um leitor de DVD às escondidas para nossa casa à meia-noite. Esta era uma das principais razões pelas quais a maior parte dos artistas curdos de Rojava frequentavam à nossa casa. Aprendi muito com eles sobre arte. Mais tarde, quando os meus irmãos mais velhos acabaram a escola, começaram a fazer documentários (em segredo) para canais de televisão curdos fora de Rojava. A minha paixão por cinema inicia nesta época, eu tinha apenas dez anos quando pude ver como se filma e edita filmes. E quando decidi ir para Diyarbakir estudar cinema, fui porque o meu professor estava a dar aulas lá na Academia de Cinema de Diyarbakir, e porque era impossível estudar cinema na Síria.

Fizeste parte do coletivo Rojava Film Commune, que produziu a tua primeira longa-metragem, The Wedding Parade (Berbu, 2022).  Agora és membro do @Kolektiva_KEZI, coletivo de cinema feminino. Quando e como foi criado, como funciona, quantas mulheres fazem parte e a que aspira o coletivo Kezi?

Kezi foi criado em janeiro de 2023. Havia um Departamento feminino no Rojava Film Commune, desde que foi criado. E todas as mulheres, para além do seu trabalho com os homens no Commune, tinham os seus próprios projectos e planos. Berbu e muitos outros filmes foram produzidos por este Departamento. No final de 2022, descobrimos que, ao fazer isto, estávamos mais uma vez a exigir trabalho extra às mulheres, e sabemos que  é habitual as mulheres da nossa sociedade participarem de modo deficitário em trabalhos no cinema. Foi por isso que criámos o coletivo Kezi, onde nós mulheres podemos nos concentrar nos nossos projectos e na nossa criatividade. O nosso grupo é composto por 8 mulheres,  profissionais de diferentes áreas: produção, formação e uma pequena parte na pós-produção (uma vez que não temos os equipamentos para fazer a pós-produção). Lidamos com muitas mulheres e de diferentes formas: damos oportunidade às mulheres que precisam de espaço para escrever ou criar, organizamos workshops para jovens que querem aprender sobre cinema, bem como oferecemos  as técnicas e o apoio à produção de filmes para mulheres que já têm um projeto. Trabalhámos com muitos grupos num curto espaço de tempo. Foi, portanto, assim que o criámos. Veja aqui o nosso Catálogo.

Para aqueles que vivem no outro lado do mundo e não sabem muito sobre a revolução em curso feita pelo povo curdo, pode dizer-nos como funciona a autogestão político-democrática e cultural na vida quotidiana? E, sobretudo, poderias falar-nos da participação, do poder de decisão e dos direitos das mulheres no Norte e no Leste da Síria?

Vou responder a esta pergunta a partir da minha experiência como cineasta e não de um ponto de vista político. Antes de 2011, ano que marcou o início da Revolução, as mulheres mais afortunadas podiam ter a oportunidade de frequentar a universidade durante quatro anos, depois regressarem a casa e assumirem funções de professoras, na melhor das hipóteses. Seguir carreiras artísticas não era considerada uma opção viável para nós mulheres. A revolução de Rojava trouxe mudanças significativas para o nosso povo, e especialmente, para as mulheres. Introduziu uma visão democrática que enfatiza a coexistência de mulheres e homens, e possibilitou a autonomia das mulheres. As Unidades de Defesa das Mulheres – YPJ, não só simbolizam a liberdade das mulheres em Rojava, como também se tornaram um símbolo para outras mulheres a nível mundial. Todas as culturas, religiões e línguas têm o direito de tomar decisões em níveis diferenciados, pela autogestão, até podem se expressar livremente na arte, no cinema.

A tua primeira longa-metragem, The Wedding Parade(Berbu, 2022), ganhou o prémio de Melhor Filme na Competitiva TRAVESSIAS da 10ª edição do Festival de Cinema Feminino Olhares do Mediterrâneo-2023, em Portugal. Aliás, um filme impactante! Quais foram os desafios e a importância de fazer este filme (rodado numa zona de guerra)?

Berbu foi filmado logo depois de eu, minha família e as pessoas de Serekaniye e Girê Spî termos abandonado as nossas casas e fugido, em 2019, e ainda não estamos autorizados a regressar. Todas as pessoas que se vêem a fugir no filme são pessoas reais de Serekaniye que vieram de um campo de refugiados para nos ajudar a contar uma história sobre Serekaniye. Quando lhes pedi para atuarem e repetirem o que lhes tinha acontecido poucos meses antes, foi um momento muito difícil da minha vida. Não podia acreditar que eles iriam vivenciar e expressar aquele sentimento outra vez, trazendo-os de volta ao momento em que perderam tudo e as suas casas. Por isso, decidi não utilizar no filme muitas imagens de choro e sofrimento, porque senti que não era justo, apesar de todos ali estarem bem. Filmamos enquanto a Turquia estava a atacar as aldeias à volta de Serekaniye e a maior parte de nós tinha famílias e amigos por lá, e não sabíamos o que lhes estava a acontecer.

Sevinaz no set de filmagem de The Wedding Parade

O que é ficção e o que é realidade em “The Wedding Parade“?  E podemos dizer que se trata de um filme autobiográfico?

O filme é baseado em histórias verdadeiras. A primeira, com a personagem Gule, foi escrita dois anos antes da ocupação turca, e é a história da minha melhor amiga Gule, que esteve noiva durante sete anos e sempre havia uma discussão na casa dela por causa da ameaça turca, e seus pais nunca chegavam a um acordo sobre o seu casamento. 

A segunda história é algo que presenciei quando fugia das bombas com a minha família, a história de uma noiva linda que nunca me esquecerei. Ela estava do lado de fora do Salão de Casamentos à procura de um carro para os buscar, depois do Salão de Casamentos ter sido bombardeado.

A terceira história, li em notícias do jornal, enquanto estava a escrever o guião, foi uma grande mudança no meu processo de escrita. Muitas das cenas do filme foram filmadas no interior de Serekaniye pelo meu irmão, que esteve até ao último dia dos combates.

Acreditas que o cinema pode ser utilizado como uma ferramenta de transformação social?  Se sim, poderia dar exemplos de como isso tem acontecido na prática quotidiana onde vives e trabalhas?

Em 2015, quando fundamos o Rojava Film Commune, para nós era uma necessidade social, mesmo se nos primeiros anos não nos concentrávamos em fazer filmes e tornar o cinema acessível aos jovens que quisessem aprender e pudessem encontrar um espaço justo. A nossa luta de longa data nunca foi de facto contada, a dor do nosso povo não era vista num ecrã, porque ninguém falava da nossa resistência. As únicas histórias contadas, foram por cineastas estrangeiros que não tiveram tempo suficiente para compreender a nossa sociedade ou a nossa história. A nossa ideia principal é, portanto, poder contar as nossas próprias histórias, enquanto tentamos partilhar histórias de todo o mundo com o nosso povo. Recebemos ajuda de toda a gente local para conseguirmos fazer isto, a começar pelas nossas próprias famílias. No final, penso que conseguimos mudar muitas coisas socialmente através do cinema, de uma forma muito difícil, mas bem sucedida, começando pelas mulheres, possibilitando-as a participar no filme, que foi o nosso primeiro trabalho social. Estamos sempre prontos a mudar o estilo, as ideias e a forma de trabalhar com base nas necessidades da nossa sociedade.

Algum projeto cinematográfico a caminho?

Agora, estou a tentar tornar o @Kolektiva_KEZI visível e mais eficaz como coletivo. E estou a trabalhar numa história sobre adolescentes curdos que têm vivido toda a sua vida numa zona de guerra. “The Wedding Parade/Berbu” foi feito com o apoio do nosso povo e amigos, todos trabalharam voluntariamente, mas ainda não consegui encontrar os modos para a sua distribuição, uma vez que não temos os profissionais devidos. E para o próximo filme estou a tentar perceber como posso fazer uma coprodução internacional que possa ajudar no futuro a tornar os nossos filmes mais vistos, incluindo “The Wedding Parade/Berbu” .

Notícias