Segunda-feira, 20 Maio

Só Nós Dois: amor e toxicidade nas relações

Quem assistiu a “Notre Dame de Paris”,  estreado no Festival de Locarno em 2019, vai ficar surpreendido com o peso da força dramática que o mais recente filme de Valérie Donzelli carrega. Estreado em Cannes, em maio passado, “L’amour et les forêts” (Só nós dois) está bem longe da leveza, comédia, fantasia e surrealismo que o último projeto de Donzeli apresentava. 

A verdade é que “Notre Dame de Paris” foi talvez um dos filmes mais ligeiros de uma cineasta que começou a dar nas vistas com “Declaração de Guerra” (2011), e provocou ondas de choque com “Marguerite et Julien” (2015) . “Gosto principalmente de fazer filmes diferentes, o que não significa que varie apenas entre comédia e drama”, disse a argumentista e realizadora ao C7nema, em outubro passado, por ocasião da Festa do Cinema Francês:  “Particularmente, depois de viver um filme durante muito tempo, quero seguir com outro em que me concentre apenas na mise en scène “.

Adaptando o livro homónimo de Eric Reinhardt, numa parceria na escrita com Audrey Diwan, “L’amour et les forêts” conta a história de uma mulher (interpretada por Virginie Efira) que é vítima de violência física e psicológica por parte do companheiro (Melvil Poupaud). “Foi bastante interessante trabalhar com a Audrey Diwan no guião, pois podemos nos estruturar intelectualmente de forma a nos complementamos”, explicou Donzelli, que desde o início da escrita pensou em Virginie Efira para o protagonismo. 

Do livro ao filme

Existem diferenças consideráveis entre a versão cinematográfica e o livro, até porque, na versão literária, a história começa quando Grégoire Lamoureux (Melvil Poupaud) faz o seu mea culpa, sentindo-se como um monstro pela forma como trata a esposa. Na verdade, toda a primeira parte do filme, sobre como o casal se conheceu e se apaixonou, foi inventada, embora tendo em consideração o que estava escrito. “Uma das razões que me fez adaptar este livro é o facto do homem que faz estas coisas horríveis ter uma tomada de consciência dos atos monstruosos que pratica”, explicou Donzelli, como que tratando essa personagem como “doente”. Como consequência dos seus atos possessivos, “temos uma mulher presa numa situação, mas levada a acreditar que tem de permanecer na relação e ajudá-lo nessa luta [contra os seus fantasmas]. Essa justaposição de sentimentos mistos atraiu-me muito (…) No livro começamos com a estrutura da relação a desmoronar-se, por isso era interessante conhecer como chegamos até esse ponto. Por isso, a parte em que se conhecem, a primeira parte do filme, é completamente inventada, mas a partir de alguns elementos que estavam no livro.”

Admitindo que não falou diretamente com nenhuma vítima de violência doméstica ou de relações possessivas, Donzelli avisa que encontrou em vários locais na internet, como blogs, muitos relatos dessa violência, além de situações que assistiu à sua volta, em particular diversos momentos de profunda manipulação, em que o perpetrador se vitimiza e transforma a vítima na culpada. Em oposição, filmes de temática similar, como “Jusqu’à la garde“, não serviram de modelo: “Não queria de todo fazer um filme como o Jusqu’à La Garde, queria algo mais onírico. Quis evitar fazer um filme de tema. Queria ir além disso e fazer um filme em torno da vítima, de forma a que compreendêssemos toda a sua complexidade, a sua franqueza a caminho da libertação.”

Sentindo-se como uma artesã do cinema, até porque gosta muito de misturar formatos e de dar um tratamento diferenciado às imagens, que têm de “ser vivas“, Donzelli estreou-se recentemente no mundo das séries de TV, mas frisa que continua a ter como alvo primordial as salas de cinema. E apesar de não dar detalhes sobre o seu próximo projeto, ela disse-nos que este não será, necessariamente, uma comédia, mas provavelmente terá uma atmosfera um pouco mais ligeira.

“L’amour et les forêts” (Só nós dois) estreou em Portugal a 11 de janeiro.

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