Sexta-feira, 19 Abril

Drive My Car: sem solavancos, a viagem que uniu Ryusuke Hamaguchi e Haruki Murakami

Nos cinemas a 10 de março

Premiado em Cannes, nomeado a 4 Óscares, “Drive My Car” do japonês Ryusuke Hamaguchi está prestes a chegar aos cinemas. 

O realizador de obras como “Happy Hour: Hora Feliz” (2015), “Asako I & II” (2018) e “Roda da Fortuna e da Fantasia” (2021) adapta agora um conto do consagrado autor japonês Haruki Murakami [inserido no livro “Homens sem Mulheres“], seguindo o espectador dois solitários – um reconhecido ator e diretor de teatro e uma motorista que o vai guiar durante um festival – que vão encontrar coragem para enfrentar o passado.

Um belíssimo e doloroso filme sobre o qual falámos com o realizador durante a sua passagem pela Croisette.  

Em 2021, lançou um filme em Berlim e outro em Cannes. O que podemos esperar para Veneza? (risos)

Pensei nisso, mas não foi possível (risos). De qualquer das formas, gostaria de visitar Veneza. É uma cidade lindíssima. 

O que o atraiu a esta pequena história de Haruki Murakami e, como cineasta, o que gosta na literatura deste autor?

O que é interessante no storytelling de Murakami é que ele tem o poder de nos fazer folhear as páginas com facilidade. O texto flui e segues na corrente. Em outras novelas, os autores habitualmente pedem ao leitor para imaginar muitas coisas, mas nas histórias do Murakami nem precisamos fazer isso, pois ele é tão bom que nem precisamos ter imaginação. Ele trata de tudo. Além disso, existe sempre um pequeno mistério ou situação instável nessas histórias, levando o leitor a querer saber como isso será resolvido e a situação estabilizada. Para mim é uma técnica de storytelling muito interessante.

Drive My Car

Todos os anos fala-se do nome de Murakami para Prémio Nobel da Literatura. Acha que isso poderá finalmente acontecer?

Estou aqui em Cannes e as pessoas perguntam-me frequentemente se acho que vou ganhar um prémio. A verdade é que não faço a mais pequena ideia e creio que o mesmo se passa com o Haruki Murakami. Nestas coisas, nunca fazemos ideia do que pode acontecer.

Pegando no filme, e no recurso a Tchekhov, através da peça ensaiada dentro do filme, que se une em tantos pontos da história principal, como foi a sua abordagem?

O que também é interessante nos livros mais longos do Murakami é que são construídos com várias camadas, com várias histórias a decorrer em simultâneo. Um dos livros em que ele faz isso muito bem é o “O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo”. De certa maneira queria copiar esta forma de contar uma história. Ao incluir o “Tio Vânia” de Tchekhov no “Drive My Car”, consegui de alguma forma ter uma realidade paralela dentro do filme e iluminar duas visões que ali coexistem-. Muitas coisas que vemos do “Tio Vânia” são um reflexo dos pensamentos do Yûsuke Kafuku. De certa maneira, era algo como o “Inception”, onde tínhamos algo dentro de outro. Os atores do “Drive My Car” eram também os do “Tio Vânia”, havendo assim uma dupla justaposição. 

Tchekhov, mestre da condição humana, Beckett, mestre do absurdo. O quão interessado está em explorar o absurdo e a condição humana nos seus filmes?

Não sou muito versado em Beckett, por isso não posso falar muito dele, mas o que posso dizer é que, normalmente, as minhas histórias são sempre pensadas a partir de situações muito realistas. Podemos ver nelas alguns pedaços do absurdo, mas preciso sempre de um caminho natural para chegar lá. Faço tudo passo a passo, levando o espectador ao como chegámos a uma determinada situação. Creio que o Murakami usa a mesma técnica para construir as suas histórias.

Drive My Car

No seu filme anterior, “Roda da Fortuna e da Fantasia”, o sexo estava muito presente nas palavras, mas aqui surge realmente em cena. Como trabalhou e pensou esse mostrar do sexo?

Sou fã do John Cassavetes. Uma vez ele afirmou que é impossível capturar com a câmara uma verdadeira cena de amor, de alguém que realmente se ama. Concordo com ele e é por isso que nunca filmei cenas de sexo até agora. E posso adiantar que é algo que não vou voltar a fazer com frequência no futuro. Mas, para esta história em particular, aquela cena era muito importante, pois tínhamos de ver o hiato entre o estar fisicamente muito próximo, mas distante mentalmente. Esta cena era essencial. Quando a filmei, trabalhei-a como se fosse uma cena de diálogos com coreografia corporal. Reconheço também que existem riscos para os atores que participam nestas cenas, por isso estou muito agradecido a eles por aceitarem fazê-la.

E a escolha de Hiroshima, como local para o desenrolar da ação, pode explicar essa opção?

Filmar em Hiroshima foi uma espécie de coincidência. O Fukuku  vai para lá porque foi convidado para um festival, mas no guião original a ideia era ir a um festival internacional em Busan, na Coreia do Sul. Até filmámos algumas cenas lá, mas surgiu a crise do Covid-19 e tivemos de interromper as filmagens. Depois não conseguimos recomeçar as filmagens fora do Japão. Foi nesse momento que Hiroshima surgiu como candidata, pois os seus agentes mostraram muita disponibilidade para filmarmos lá. É um local lindo, como vemos no filme. 

Claro que o seu nome carrega o peso da história e, sendo honesto, isso preocupou-me, especialmente através da sensação de vítima e simultaneamente perpetrador. Durante a 2ª Guerra Mundial, o Japão invadiu muitos países e foi assim um perpetrador. Por outro lado, em Hiroshima viviam pessoas que pagaram o preço disso e foram  vítimas. Este balanço também foi interessante de ter no final do filme.

Ryusuke Hamaguchi venceu em Cannes o prémio de melhor argumento

E a introdução da linguagem gestual no filme? De onde surgiu esse seu interesse nela?

Comecei a interessar-me por linguagem gestual quando fui a um festival de cinema dedicado a pessoas com deficiência auditiva. Lá, eu era o elemento estranho que não entendia a linguagem. Tudo era muito silencioso, mas havia imensa comunicação. Entendi aí que a linguagem gestual não é apenas uma linguagem para pessoas com deficiência auditiva, mas toda uma cultura. Há também uma beleza invariável nos movimentos, o que também me seduziu. Existe uma verdadeira conexão entre os movimentos e as emoções. Quis também mostrar isso no filme.

Os seus filmes têm sempre durações consideráveis. Neste caso, quase três horas. Tinha noção dessa duração desde o início?

Nunca penso nisso inicialmente. Para mim, são as histórias que decidem, em conjunto com conversas que tenho com os produtores. Neste caso específico, o importante era definir quanto tempo o Kafuku e a Misaki demorariam a revelar-se. Eles são pessoas que normalmente guardam as coisas para si e não se expõem. Claro que no filme temos também a história do Oto e do Tio Vania que vão ajudar os espectadores a entender o que vai nas suas cabeças, mas finalmente quando se revelam, não queria que parecesse um momento de conveniência para com a duração. Pretendia antes que tudo fosse fruto de um processo natural. A duração do filme está assim ligada, no meu entender, ao tempo que eles demoram nesse processo de se revelarem.

Falando no futuro, tem algum novo projeto?

De momento não tenho nada delineado. Tenho uma ideia vaga de filmar um documentário no futuro, mas estou ainda no processo de tentar fazê-lo com os alvos do tema. 

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