Sábado, 18 Maio

Aly Muritiba: “Fiz ‘Jesus Kid’ num momento de muita raiva”

A estas alturas a sessão de abertura do FESTin já decorreu entre gargalhadas e aplausos nas horas erradas (dois falsos finais enganaram o público), demonstrando mais uma vez que há filmes feitos, mais do que outros, para experiências coletivas.

Apesar dos risos despertados por um humor recheado de citações, frequentemente “nonsense” e absurdo, a sátira surge num período de ódio – mais precisamente neste interminável governo de Jair Bolsonaro.

E, conforme essa entrevista ào C7nema a Aly Muritiba, o filme funciona sim como um exorcismo. “Se na existência real não podia sair por aí explodindo os conservadores patéticos que apoiaram o golpe de estado de 2016, ao menos no meu filme eu podia”, disse.

Jesus Kid traz Paulo Miklos, muito conhecido no Brasil como um dos cantores do mítico grupo de “rock” Titãs, vivendo um escritor que é obrigado a confinar-se num hotel para produzir o argumento para um filme. Com referências que vão dos Coen ao “western spaghetti”, o restante torna-se numa movimentada história que descreve um Brasil sem rumo, perdido entre evangélicos, fascistas, “coachs” e, claro, o atual governo pairando como uma sombra como justificar isso tudo.

Enquanto o filme vai fazendo o seu percurso, Muritiba aguarda os rumos de seu novo filme, Deserto Particular, estreado em Veneza e escolhido pela Academia Brasileira de Cinema como o representando brasileiro nos Oscars. E, marco importante, pela primeira vez sem qualquer tutela do governo.

Numa altura do filme, Jesus Kid diz ao seu criador: “Eu existo, Eugênio, para você suportar a sua mediocridade”. Tal como em outros trabalhos seus, os mecanismos da própria arte e da criação da fantasia te interessavam. Neste caso há este “alter ego” capaz de concretizar aquilo que o seu criador não consegue… Como vê essa relação entre o artista e a sua fantasia?

A fantasia é uma das ferramentas mais poderosas para que nós humanos suportemos nossa mediocridade. É através dela que nós vivemos outras existências que são figas das nossas, ou criamos novas existências que potencializam as nossas. Eu vejo a fantasia como ferramenta transformadora: ora destrói as coisas com as quais não compactua (Jesus Kid), ora constrói coisas que deseja (Deserto Particular).

O seu Brasil não parece muito inspirador – nacionalistas, protofascistas, evangélicos, neurolinguistas… Tal como a história criada pelo seu protagonista, nada parece fazer o menor sentido… O teu filme funciona para ti como uma espécie de exorcismo, ainda para mais em forma de comédia, de tudo isto?

Fiz Jesus Kid num momento de muita revolta e de muita raiva. Em 2019, quando eu o filmei, o Brasil estava entrando por um caminho muito obscuro e era fácil antever o que viria pela frente quando a nação elegeu um fascista como o seu presidente. Então eu usei essa raiva para promover catarse.

Se na existência real eu não podia sair por aí explodindo os conservadores patéticos que apoiaram o golpe de estado de 2016, nem sair por aí com uma Smith & Wesson atirando nos fascistas, ao menos no meu filme eu podia. E foi exatamente o que fiz.

Acha que o filme acaba por representar uma crise do Brasil com o seu próprio imaginário, com a própria ideia que o país faz de si próprio? Acha que o país tem ferramentas culturais para se reinventar?

Nós somos, historicamente, uma nação conservadora, mas não somos fascistas. O que acontece agora no brasil é último suspiro dos fascistas, que sempre existiram, mas que antes não encontravam eco para suas asneiras. Desde a proclamação da república em 1889, somos governados, ora por oligarcas rurais, ora por militares.

Apenas entre 1994 e 2016 é que temas como direitos humanos, igualdade social e etc entraram na pauta dos governos. Esse período, marcado pelas presidências de um sociólogo, um sindicalista e uma ex-guerrilheira, irritaram demais os conservadores, que com a ajuda da media deram um golpe em 2016 e elegeram Bolsonaro. Mas isso vai passar. Os fascistas não perdurarão.

A migração para a comédia personifica uma alteração radical no seu cinema até aqui. O que tira da experiência? Consegue se imaginar voltando à comédia?

Na verdade, a única coisa que mudou foi gênero cinematográfico. Eu continuo fazendo filmes políticos que refletem sobre o Brasil contemporâneo.  E sim, me imagino fazendo novas comédias, mas também fazendo horror, fazendo thriller, fazendo musical, softporn etc. São as histórias que me ditam o género com o qual trabalharei.

Seu novo trabalho, Deserto Particular, é o indicado brasileiro para os Oscars no primeiro ano sem qualquer participação do governo federal. Como vê esse tema e o que representa para ti essa indicação?

Deserto Particular é um filme de amor feito em tempos de ódio. Um filme de encontro num país desencontrado, desencantado. Então ter esse filme, que é também um filme queer, representando no Oscar o país que mais vitimiza as pessoas LGBTQIA+ no mundo é um manifesto dado por nosso cinema: nós não nos curvaremos aos fascistas, mas nossas ferramentas de luta são outras, o amor ao invés da raiva, o afeto ao invés da violência.

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