Quinta-feira, 18 Abril

Lacuna: Thriller psicológico aproxima o cinema brasileiro das fronteiras do assombro

Filmado em cerca de duas semanas, durante a pandemia, como foco numa relação mãe e filha que se esgarça a partir de estranhos (e assombrosos) fenómenos, “Lacuna”, de Rodrigo Lages, tem se tornado um ímã de cliques na streaminguesfera, via Globoplay, ao aproximar o cinema brasileiro de fronteiras de género que abrangem de “Rosemary’s Baby” a Ari Aster. Sofia, a protagonista, interpretada por uma Lorena Comparato em estado de graça, tem a sua vida destroçada depois que a sua mãe, Helena (Kika Kalache), sofre um acidente grave e volta dele com hábitos nada saudáveis, como morder a própria carne e desenhar paisagens infernais. A direção de arte detalhista e o uso de cores saturado surpreenderam a crítica. Na entrevista a seguir, Lages fala ao C7nema sobre a sua estrutura narrativa.

Existe um quê de “Persona” (1966) na relação entre a personagem de Lorena e a mãe. Essa evocação faz pensar no quanto você se embrenha na dimensão existencial das personagens. Que dimensão possível existe para uma reflexão existencial numa estrutura de género? E de que maneira, neste caso, essa dimensão existencial favorece uma reflexão sobre sororidade, sobre o feminino?

Houve um profundo estudo, durante a preparação, para que a dimensão existencial das personagens fizesse um paralelo com as suas mudanças ao longo do filme. “Persona” foi, de facto, colocado na mesa e serviu como importante referência para Kika Kalache, que interpreta Helena. Antes do terror ou suspense, o foco sempre foi o drama familiar, pautado em uma analogia com a “lacuna” existencial das personagens. É aí que reside a reflexão no caso deste gênero e deste filme em especial. Lacunas que todos nós temos e que, no caso das personagens de Lorena e Kika, são preenchidas com novas descobertas de uma relação há muito fragmentada. Há um impedimento de abandono por parte da protagonista, facto que a obriga a se sacrificar em nome da sua mãe, independentemente das suas mudanças ou comportamentos.

O seu domínio das dinâmicas do medo é notável, numa linha que lembra “Repulsa” (“Repulsion”), de Polanski. Mas o quanto essa estrutura do “jump scare”… do silêncio que precede o esporro… se comporta nas dimensões do streaming?

Acredito que as dinâmicas para se gerar o medo são pautadas na “pressurização”, que pode ser imposta ao longo da narrativa. Pode se deixar o espectador tenso por minutos para depois “despressurizar”, revelando algo chocante e que sirva de ferramenta para o avanço do plot. No caso de “Lacuna”, a ideia era criar uma atmosfera mais densa, pesada e estranha. Fazer uma imersão do espectador neste universo e descobrir, aos poucos, o que de fato se passa com esta família e o porquê das mudanças das personagens, sempre fazendo essa montanha-russa de antecipação do que está por vir. O artifício do jump scare é válido, mas, se não acontece depois de uma cuidadosa construção, fica vazia. Vira uma tentativa de susto, uma pegadinha. Ao mesmo tempo que pode ser bem-sucedida comercialmente, pode ficar rasa para quem assiste. No streaming, há espaço para todos os subgêneros ou escolhas narrativas.

A que tradição do terror você, conscientemente, reporta-se? De que maneira uma referência fora da hegemonia hollywoodiana, como Paco Plaza, serve como farol para ti?

Grande parte das referências que guardo vêm de fora da hegemonia hollywoodiana. Muito do que acabo aplicando nos projetos, mesmo inconscientemente, vem do consumo do terror japonês e europeu, de diretores como Takashi Miike, Georges Franju, Nicholas Roeg, Dario Argento e mesmo de dramas bem antigos de Kenji Mizoguchi. São diretores de obras que carregam camadas dramáticas fundamentais para que o terror e suspense ganhe força. Claro que o cinema americano acaba sendo a grande referência para quem assiste, mas mesmo ali, diretores como Ari Aster bebem de fontes além de Hollywood.

De que forma a sua longeva experiência como roteirista favorece a sua imersão no set como diretor?
A experiência como roteirista foi fundamental para entender as possibilidades e limites que se impõem numa produção e num set. Acabei com um entendimento do que é adaptável para a realidade de uma produção. Tive a oportunidade de participar do dia a dia de alguns sets de alguns trabalhos que desenvolvi para outros diretores. Isso trouxe um grande entendimento das relações, acerca da objetividade e condução de um filme. A grande diferença é que, quando se trata de algo 100% autoral, é fundamental que o diretor saiba exatamente o que quer. No caso de um filme como “Lacuna”, rodado durante a pandemia e em 12 dias, não havia brecha para erros. Então a preparação foi mais que fundamental. E partindo de uma experiência com roteiros, tudo ficou mais fácil.

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