Sexta-feira, 26 Abril

Vincent Lindon: “É preciso fazer grandes filmes e não depender apenas de um tema social”

"Titane" chega aos cinemas a 7 de outubro

Quando filmou “Quelques jours avec moi” em 1988, poucos anos depois de iniciar a sua carreira cinematográfica, Vincent Lindon questionou o realizador Claude Sautet como deveria mostrar angústia numa cena que tal o exigia. A resposta do realizador foi taxativa: “Não me interessa como. Pensa na tua mãe, no teu gato, que morreu ontem, mas quero ver isto: angústia.

Esta frase acompanha o ator desde então, no seu método e abordagem às personagens, longe da psicologia, mas próximo daquilo que considera orgânico. No fundo é apenas um veículo ao serviço de uma visão e tal como o efeito Kuleshov mostra, o que aparece antes e depois dele numa cena condiciona a interpretação do espectador sobre ela.

Habituado a trabalhar em papéis aguerridos desde sempre, com cineastas como Stéphane Brizé (“A Lei do Mercado: Em Guerra“), Jacques Doillon (“Rodin“), Xavier Giannoli (“A Aparição“) e Benoît Jacquot (“O Último Amor de Casanova“), Lindon teve um dos seus papéis mais marcantes no cinema em “Titane”, o filme de Julie Ducourneau que arrecadou a Palma de Ouro em Cannes de forma algo surpreendente.

Nele o sexagenário assume o papel de um bombeiro cujo filho desapareceu há anos e que o vê “reaparecer” na forma da personagem interpretada por Agathe Rousselle. Um papel essencialmente “físico”, como nos explicou numa longa entrevista em San Sebastián, cidade onde “Titane” também deu que falar. “A minha tarefa é fazer um protótipo da personagem e entregá-la ao espectador.” disse-nos. “Depois disso, como cada um lê essa personagem, é problema deles. A Julia Ducourneau é a fábrica e eu o seu veículo. Uns gostam dos filmes, outros não. É isso que é a cultura e arte são (…) Não há regras, receitas. Não é como o desporto que alguém é mais rápido e sobe ao pódio. Na cultura, um livro diz algo a uns e nada a outros.” 

Vincent Lindon em “Titane

Admitindo que nunca faz cálculos quando escolhe os papéis, Lindon afirma que primeiro a informação que recebe “toca-lhe no coração e só depois na cabeça”: “É algo orgânico, algo animal. Li o guião e mesmo que toda a França dissesse “não faças o Titane”, eu diria que entendia essas pessoas mas faria-o na mesma. A Julie [Ducourneau] é forte e não existem vantagens sem inconvenientes, ou inconvenientes sem vantagens. Sou mais velho que ela e existe um enorme respeito mútuo. Ela pediu-me coisas muito precisas e eu disse sim. Sabia que ela era muito inteligente e quando a questionava  ela ouvia. Não tenho medo dos seres humanos, mas sim de dececionar, de não ser corajoso. Mas nunca tenho medo das pessoas. E posso sempre ter algo a receber deles. (…) O poder está em dizer sim. Sim, caso contigo. Sim, tenho um filho contigo. Sim, compro uma casa. As pessoas que dizem não, são o número 2. Às vezes digo não, mas com a Julia foi um sonho. Eu entrava feliz de manhã para o trabalho e saía triste quando as filmagens acabavam ao fim do dia. Quando duas pessoas são profissionais e apaixonadas, nada os trava. Amei a minha personagem desde o início, embora não consiga explicar o porquê. Agora sim, começo a entender o que me tocou. Mas quando disse sim foi um reflexo como o de um cão. Não sei por que disse sim, mas agora começo a entender, pois este filme partilha o meu segredo. E é um segredo que não sabes o que é. Se soubesses não era segredo. Quando escolho e faço uma personagem, é uma espécie de mini-psicanálise acelerada. (…) Nunca digo a mim mesmo que devo trabalhar  ou aceitar um papel porque se trata de um jovem realizador. Essa é uma má razão. (…) O Titane é um filme com muitos tópicos. Quando disse sim a ele, no início, disse que concordava em ser usado para ajudar esses tópicos a irem para uma discussão. É isso e já é muito que ofereço. A Julia é a melhor pessoa para falar do que queria para o filme. Se eu pensar na mensagem que ela quer transmitir quando estou a interpretar a personagem, entro no campo da sua psicologia e não gosto. Estou no campo do orgânico. É “Kuleshov”. Aquilo que colocarem antes ou depois de mim, condiciona o que fiz. Não entro na psicologia das coisas, apenas me posiciono”. 

Vincent Lindon em “Titane

O que move então Lindon no cinema e o que têm em comum os cineastas com que optou trabalhar ao longo da vida? A resposta é frontal: “Todos os cineastas com quem trabalhei têm alguns pontos em comum. São extremamente trabalhadores, exigentes e inteligentes. Não consigo trabalhar com alguém que deixa se estar e fica contente com um “não está mau”. Todos eles são perfeccionistas e conscienciosos. Quando trabalhei com o Stéphane Brizé, por exemplo, foi igual. Com o Alain Cavalier, ou com a Claire Denis, num filme com a Juliette Binoche que ainda vai estrear. É gente apaixonada que vem do campo de batalha. São generais que atacam juntamente com os seus soldados, não ficam atrás da caravana. É isso que preciso para trabalhar. Quando alguém é trabalhador, inteligente, perfecionista e apaixonado, falamos a mesma língua, somos da mesma família. É isso que me interessa.” 

Mensagem social e política sim, mas e o Cinema?

As pessoas esquecem constantemente, mesmo os jornalistas, os críticos e os selecionadores dos festivais, o cinema. Existe uma mensagem, algo sobre a nossa sociedade, sobre os tempos atuais, mas existe o Cinema. E é preciso algo que puxe o cinema para a frente. Hoje em dia faz-se um filme sobre um tema muito social e pode-se até filmá-lo muito mal. Um tema social como os coletes amarelos, a pobreza, o aborto, a religião. Tudo isso é importante, mas não é só isso. É preciso fazer grandes filmes e não depender apenas de um tema social. Hoje em dia, quando se faz um filme de amor, nunca pode ser apenas sobre isso. Tem sempre que existir um fundo sociológico. É obrigatório, como se fosse uma regra. Não há regras! Podemos apenas filmar e falar de uma mulher e um homem que apenas olham um para o outro e se amam.

Julia Ducourneau e Vincent Lindon em Cannes

Longe dos novos tempos e das redes sociais

Vincent Lindon não gosta das redes sociais e não aceita que lhe tirem fotos para as publicar nessas plataformas. E fala mesmo de uma estupidificação à conta delas. “Antigamente, quando dizíamos que algo tinha acontecido as pessoas pediam para contarmos o quê. Agora pedem para ver o que aconteceu”, lamenta, antes de nos contar  a história de um rapaz que, num museu, olhava para as obras de arte através da câmara, tirava uma foto e continuava a observar a peça de arte no seu telemóvel. ”Não tem sentido”, conclui.

No mesmo sentido, admite ser das poucas personalidades do cinema gaulês que não tem qualquer conta nas redes sociais: “Não sou obrigado a tê-las. Faço o que quero. Eu não sei o que disseram de mim no Facebook, Twitter ou Instagram e as pessoas não sabem o que disse sobre elas. Não quero ter de dizer que comi mozarella e não me interessa nada o teu gato. Não é o meu estilo e faço o que quero.”

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