Mais de duas décadas depois de ter estreado, “Crash” de Cronenberg volta aos cinemas. Se, quando foi feito, outras duas décadas depois de J. G. Ballard ter escrito o livro em que se baseia, já se levantavam questões quanto à sua relevância, por causa da mudança do papel do carro na sociedade, agora essa pergunta parece ainda mais pertinente: passado tanto tempo, ainda faz sentido este filme ou é apenas um resquício nostálgico de um tempo que passou? Já muito foi escrito, até a nível académico, sobre ele, tendo sido avançadas leituras mais óbvias (Sigmund Freud, com o seu Eros e Thanatos, ou Donna Haraway, com o seus ciborgues) e outras mais obscuras (Gilles Deleuze e as suas máquinas desejantes), mas, como obra de Arte polissémica que é, “Crash” não parece esgotar-se nestas explicações. Ainda assim, como é (re)ver este filme passado tanto tempo? Ainda se mantém a reacção (de asco ou libidinal) intensa ou apenas a curiosidade de olhar para uma fotografia antiga?

O primeiro impacto é óbvio: este filme nada tem a ver com a glamourização do automóvel da série “Fast & Furious” e dos seus sucedâneos, ainda que se baseie na relação mais ou menos ultra-masculina com este objecto. Na série, como noutros filmes, os acidentes são espectaculares, mas sem consequências, ainda que, ironicamente, um dos protagonistas tenha morrido num. “Crash” traz o acidente, a sua fisicalidade e as suas consequências, para primeiro plano e não nos deixa sair deles. O mais parecido com isto é a cena do acidente no “Fight Club“, outro filme ultra-masculino dos anos 90’s, em que o acidente e as emoções que provoca são procurados de forma transformativa. Mas “Crash” não procura essa transformação, pelo contrário, foca-se na reacção mais comum a emoções fortes: o desejo sexual.

É um daqueles truísmos, quase grosseiro de óbvio, que a nossa sociedade ocidental é obcecada por sexo, com um twist perverso de que é algo constantemente representado e sugerido, mas nunca verdadeiramente abordado ou explorado, com a obscenidade e a pornografia a servirem de educação (insuficiente e problemática) para muitas pessoas. É-o de tal maneira que 5 minutos na Internet e a busca mais casual e inocente confirmam a famosa “regra 34”: se algo existe, há porno sobre isso. É por isso que o Google disponibiliza o “Safe Search”: a pesquisa segura, pelo menos desses resultados. No entanto, e de forma curiosa, parece ainda haver limites. Há-os legais como à pedofilia, mas também os há de provocarem reacções tão fortes que relega os seus seguidores para fóruns obscuros em que só se tropeça se se os procurar ou se se tiver azar. Ballard, no seu livro, conseguiu encontrar um. Um tão esotérico que foi declarado uma parafilia e nomeado pelo infame John Money: sinforofilia.

Em pleno pós-guerra, depois do embate da contracultura, mas ainda antes da primeira crise do petróleo, quando o automóvel era rei e a cultura construída à sua volta o exacerbava muito para lá do seu aspecto funcional, sexualizar o aspecto mais negativo e que sempre se quis ocultar deste transporte, foi recebido com reacções de que o autor era doente para lá de qualquer ajuda possível ou de que o livro era o “mais repulsivo alguma vez encontrado”. O filme, ainda que Cronenberg já estivesse associado ao “body horror”, chegou a ser censurado e a sua exibição proibida. E agora, tanto tempo depois, este impacto visceral não parece ter diminuído.

Olhando para “Crash” como um objecto formal, poder-se-ia dizer que é frio e que o estilo visual é datado, mas o tabu do desejo homem-máquina, aqui potenciado pela falha da última, continua vivo. Sim, há uma concentração demasiado masculina na penetração como forma de concretização de desejo, mas pode laudar-se a fuga à heterossexualidade. Pode argumentar-se que o impacto do livro é reduzido no filme, incapaz de sobrepor mapas de significado com a facilidade que só as palavras permitem, mas, numa sociedade tão visual, também se pode dizer que ver causa reacções mais fortes. Pode não gostar-se desta representação ou daquele detalhe estilístico, mas o conceito, e com ele o impacto, está lá.

No final, o que é “Crash” senão o tornar óbvio que a separação entre os nossos corpos e a tecnologia de que nos rodeamos não existe e a sua inclusão natural no nosso desejo? Numa sociedade em que é quase impossível fugir ao automóvel, em que estes ocupam o nosso espaço social e físico, e que muitas vezes são a única mediatização do encontro com o outro, como negá-lo? A psicogeografia do acidente, como linhas que se recusam paralelas e se unem numa explosão de dor e emoção, é o locus óbvio de possível sexualização. Sim, vai sempre haver uma maioria que assume que a reacção libidinal é asco, mas outros vão reconhecê-la como tal.

Talvez seja o medo de assumir o corpo como máquina de uma forma não dualista que mais nos assusta. Como o mostram o impacto que “Superman 3” teve em alguns, a reacção ao filme de culto “Tetsuo: Ironman” (que o crítico do Washington Post comparou a uma extracção de um dente sem anestesia), ou o sempre presciente Kafka no seu conto “Na colónia penal”, a nossa relação com a tecnologia não é simples. Não de uma forma ludita ou anti-tecnológica, apesar de também existir, mas da incompreensão de como esta é recebida e integrada e, ainda mais difícil, do que ela diz sobre nós. Basta referir o medo que temos de nos esquecer do telemóvel em casa para perceber que, neste momento, não nos podemos limitar à nossa biologia quando falamos do nosso “corpo”. Mais, a base dualista corpo-alma (ou mente, como se preferir), que é um dos fundamentos da nossa sociedade, quebra-se com esta expansão e causa um mal-estar que explica a posição anti-tecnológica de algumas religiões. O que quer que seja,Crash, tanto o filme como o livro, não perderam a sua força, percorrendo as estradas dos nossos medos e rebentando em explosões de desejo.

Pontuação Geral
João Miranda
Jorge Pereira
crash-cronenberg-sem-airbagUm filme ainda pertinente sobre o desejo que surge de formas inesperadas