Se alguns realizadores iranianos têm encontrado formas engenhosas de contornar diversas limitações e barreiras como as proibições de filmar (Jafar Panahi), Mohammad Rasoulof – ele mesmo retido no seu país por “colocar em risco a segurança nacional” e “espalhar propaganda” contra o regime – decidiu pegar o “touro de caras” através de objeto cinematográfico político que ataca ferozmente a pena de morte.

Através de um conjunto de histórias pessoais e familiares de pessoas forçadas pelo seu vínculo laboral ou militar a matarem em nome do estado, “There is no Evil” é um exercício de destreza ideológica e moral na veia do militante “Último dia de um Condenado à Morte” de Victor Hugo, narrando a outra face da mesma moeda na aplicação da pena capital. O alvo aqui são os carrascos, aqueles que carregam em si o fardo funesto de tomarem a decisão final que condiciona perpetuamente a sua vida, e implicam a morte de alguém.

Se num primeiro segmento vemos a vida normal de um homem, preso a problemas do quotidiano e a relações familiares ordinárias, até que clica num botão e entrega um conjunto de homens ao enforcamento, no segundo tomo existe num militar em clara recusa de tomar tal decisão. Na terceira história vemos as implicações psicológicas do aceitar acatar ordens, e no quarto capítulo o quanto a vida de alguém muda por recusar participar no assassinato “legal” de alguém.

Todas estas peças, estas histórias pessoais, encaixam num filme só onde lei, moral e ética são postas a nu através de um jogo de causas-efeitos de contornos eternos. Acatar a ordem de executar alguém, ou recusar e tornar-se ele mesmo um alvo dessa pena? 

É que ao contrário da maioria do cinema iraniano moderno, que se socorre de forma imaginativa entre alegorias, metáforas e muitas vezes filmes de género para tomar posição contrárias ao regime ideológico que impera no Irão – em filmes sobre o aborto (Being Born), problemas financeiros (Boarding Pass; Negar; Gilda), crime/corrupção/injustiça (Negar; Invasion; Lantouri; Deny; Gaze; Blockage; Just 6.5), e dilemas morais (Melbourne; A Special Day; The Home; No Date; No SignatureA Separation) -, Rasoulof  vinca claramente uma posição ao ato de obrigar alguém a executar a condenação capital. E fá-lo de frente (até a cena da raposa no segmento final é frontal e sem espaço para grandes interpretações), estendendo a sentença de morte do condenado ao carrasco, efetivando assim a sua posição de um “desertor” ideológico pronto a acatar com as consequências (sejam quais forem) da sua dissidência.

Um enorme filme, perpetuado por uma realização cuidada, sempre lúgubre na atmosfera, quer nas cenas interiores como exteriores, que transmite eficazmente a vida soturna de pessoas esmagadas na sua individualidade por um regime claustrofóbico e opressor.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
o-mal-nao-existe-o-fardo-da-dissidenciaUm exercício militante de destreza ideológica e moral contra a pena de morte