Fico te devendo uma carta sobre o Brasil/I owe you a letter about Brazil “(2019) marca a estreia de Carol Benjamim na direção de uma longa-metragem. O documentário recebeu menção especial do Júri no IDFA – Festival de documentários de Amsterdão, vai compor a seleção oficial do FIFDH – Festival de cinema de direitos humanos de Genebra/Suíça em 2021 e fará parte da mostra competitiva do Tempo Documentary Festival/2021 na Suécia. E no Brasil foi exibido pela primeira vez na competição brasileira de longas-metragens no início de outubro 2020 no Festival de documentários É Tudo Verdade, onde recebeu menção honrosa, e entrou em cartaz nos cinemas brasileiros agora no início de novembro 2020.

O documentário dirigido por Carol Benjamim (Carolina Benjamim) segue a linha de filmes de busca que entrelaçam a memória pessoal/familiar e a do país – sobre a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), a exemplo de “Diário de uma busca” (2010) de Flávia Castro, “Os dias com ele” (2014) de Maria Clara Escobar e “Construindo pontes” (2017) de Heloísa Passos. As realizadoras buscam por meio do cinema conhecer melhor o passado familiar, colocando em discussão o sinistro passado político do Brasil.

Em “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil“, o passado e o presente de três gerações de uma família amalgamam-se: Iramaya Queiroz Benjamin (1924-2012) – a avó; César Queiroz Benjamin (1954-) – o pai; e Carol Benjamin (1983-) – a filha e realizadora do filme, três vidas costuradas pelas perturbações deixadas pela ditadura.            

A realizadora acede à história política do Brasil mexendo num silêncio íntimo do seu pai guardado há anos, para no tempo presente ressignificar um passado pungente. Os governos ditatoriais tinham um projeto de silenciamento e apagamento da memória deste período, algo que perdura até hoje. Eles documentaram os seus feitos – os crimes cometidos e querem ainda hoje trancá-los a sete chaves. E quem sofre com isso são as vítimas de torturas ainda vivas e seus familiares que carregam os traumas. Muitos dos sobreviventes ainda hoje escondem, talvez involuntariamente e até mesmo dentro do universo familiar, as marcas do que viveram nos anos de chumbo, como é o caso da história contada em “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil“.  

No início do filme Carol relata: “Meus pais têm documentos históricos trancados numa espécie de caixa preta”. E são os mistérios desta caixa preta que ela tenta desvendar. Logo, ficamos sabendo que seu pai, César Benjamim esteve encarcerado numa cela solitária por 3 anos e meio (e mais 1 e meio em outras celas) durante a ditadura militar, foi preso no dia 31.8.1971, na época tinha 17 anos e participava ativamente do movimento estudantil secundarista. Ele foi torturado no DOI-CODI- Destacamento de Operações de Informação/Centro de Operações de Defesa Interna – órgão de tortura subordinado ao Exército brasileiro. A prisão de alguém nesta idade já é um indício do desrespeito à lei por parte dos militares (mas eles eram a Lei), uma vez que no Brasil encarcerar um menor de 18 anos ainda hoje é proibida.

Carol, que além de realizadora e personagem, é também narradora do filme, numa tentativa de aproximar o seu pai da história que ela conta, escreve-lhe uma carta dizendo que irá à Suécia, local onde ele vivera em exílio quando foi liberto da prisão no Brasil em 1971. Ela procura pistas sobre o passado de César, que quase nada revela ao responder a carta da filha. As duas cartas são lidas em off por ela.

O tempo fílmico escorre e eis que surge na tela, a meu ver, a personagem mais importante da história, Iramaya Benjamim.  

Ela aparece em imagem de arquivo gravada em 1999, quando se comemorava no Brasil 20 anos da Lei de Anistia. Na sua fala, ouvimos sobre a prisão de César e também do seu outro filho Cid Benjamim (1948-), igualmente ex-preso político, militante dirigente da organização de esquerda de luta política e armada, do chamado movimento revolucionário MR8 (do qual César também fez parte). Eles estão ainda vivos, mas não deram depoimentos para o documentário, o primeiro, é hoje, cientista político e o segundo, jornalista; curiosamente não quiseram se envolver no filme de Carol e não nos é dado saber a razão. Senti a falta de saber mais, uma vez que durante o regime ditatorial os dois eram de esquerda, foram presos e torturados, lutaram contra os governos dos generais e a favor da liberdade e democracia; a voz, o ponto de vista deles sobre o despotismo do passado parecia-me substancial no filme, especialmente, neste momento em que a história se repete, já que um novo autoritarismo se instala no Brasil com repressão, perseguições políticas, etc. 

Cid Benjamim ficou pouco tempo preso e logo foi enviado ao exílio pelos militares. Esteve exilado na Argélia em 1970 e depois na Suécia, retornando ao Brasil em 1979 beneficiado pela Lei de Anistia. Nos anos seguintes continuou a militância política no PT – Partido dos Trabalhadores e depois no MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, etc. Trago o seu discreto depoimento público à Comissão da Verdade (na OAB do Rio de Janeiro-RJ) em agosto de 2012, depoimento não mostrado em “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil“. 

Para quem não sabe, as comissões da verdade (nacional e estaduais) foram criadas no governo da então Presidenta Dilma Rousseff com o objetivo de apurar e trazer a público os crimes cometidos pelos governos ditatoriais contra quem se opunham a eles. Infelizmente, embora tais comissões tenham a sua importância, elas não foram também comissões de justiça, os algozes dos militantes políticos até hoje não foram julgados e punidos. 

Por sua vez, no link a seguir é possível ouvir o comovente depoimento de César Benjamim à Comissão da Verdade (RJ, em julho de 2012, falando da sua trágica experiência na prisão, este é o primeiro depoimento dado 36 anos depois de ter sido libertado da prisão em 1976, quando foi viver no exílio na Suécia (onde já vivia seu irmão Cid). César, assim como o irmão retorna ao Brasil em 1979 com o benefício da Lei de Anistia. No filme, na parte final, Carol mostra um trecho curtíssimo do depoimento do pai. 

Das coisas que o filme não menciona, mas não custa sair da tela e lembrar, o cientista político César Benjamim participou da criação do PT-Partido dos Trabalhadores e foi um dos coordenadores da campanha eleitoral do ex-Presidente Lula em 94, época aliás, em que se distanciou do PT e mais recentemente da esquerda; sua vida tomou outros rumos políticos. 

Voltando ao interior do filme e ao depoimento de Iramaya na comemoração dos 20 anos da Anistia, ficamos sabendo que o seu marido, Ney, era oficial militar, coronel do exército. E ela relata que um dos colegas militares do marido, ao mesmo tempo que gentilmente beijava suas mãos ao cumprimenta-la, torturava os seus filhos na prisão. Na imagem a seguir, Iramaya e César na época da prisão dele.

Iramaya, até então uma pacata dona de casa que não ousava contrariar a opinião do marido, diante da prisão dos filhos e com uma coragem brutal, vai lutar incessante em busca da liberdade de César e Cid, tornando-se uma militante política incansável e audaz defensora dos direitos humanos, recorre até mesmo a Anistia Internacional na Suécia por meio de cartas enviadas, cartas que denunciavam a situação dos filhos presos políticos.  

E é a partir desta relação com o passado que Carol Benjamim, em 2016, decide ir até Estocolmo à procura de documentos e imagens sobre o tempo em que seu pai viveu no exílio e sobre o passado político dele no Brasil. Nesta viagem ela encontra Mariane Eyre–da Anistia Internacional na Suécia, interlocutora e amiga confidente de sua avó por 36 anos, e é quem ajuda Carol encontrar o que buscava (imagem delas abaixo, a esquerda).       

Ela encontrou também com outras duas pessoas na Anistia Internacional Sueca. Saliento, por sinal, que o nome do filme deriva de um trecho de uma carta de Iramaya à Mariane. Carol passou anos sem saber detalhes do que o pai vivera nos porões ditatoriais no Brasil. Nesta viagem a Estocolmo emociona-se ao ver documentos e fotos de César Benjamim do tempo da militância política. Na imagem a direita, César (com camisa longa e escura) quando chegou na Suécia e sendo recebido pelo irmão Cid, esposa e filha. 

Retomando a protagonista do filme, Iramaya, ela foi uma das fundadoras do Comitê Brasileiro pela Anistia no Brasil, em 1978 (na imagem a seguir ela na campanha pela Anistia, pela liberdade dos presos políticos). Depois de muita luta e com apoio das pessoas que manifestaram continuamente nas ruas, conseguiram que fosse sancionada a controversa Lei de Anistia. Lei que beneficiou presos políticos, possibilitando quem vivia no exílio a retornar ao Brasil sem ser punido, mas beneficiou também os agentes da ditadura, que não foram julgados pelos crimes cometidos e seguem até hoje impunes. 

Portanto, a luta de Iramaya e tantos outros brasileiros foi fundamental para que o então Presidente da República, João Baptista Figueiredo, assinasse a Lei da Anistia em 1979 (faltando 6 anos para o fim do regime militar), concedendo o perdão oficial a alguns presos políticos que sofreram nas mãos e nos bastidores dos órgãos de repressão da polícia política do regime militar. Contudo aqueles militantes políticos, que na visão dos generais cometeram “crime de sangue”, termo usado pelos militares para nomear quem participou ativamente na luta armada contra o terrorismo de Estado, estes não foram beneficiados. 

Nem todas as mães tiveram a mesma sorte que Iramaya, a renomada estilista brasileira Zuzu Angel (1921-1976), mãe do militante político Stuart Angel (1946-1971), estudante de economia da UFRJ e membro do MR-8, um jovem de 25 anos desaparecido durante a ditadura. Zuzu por anos denunciou publicamente o caso do filho, até ser assassinada num falso acidente de carro no Rio de Janeiro dia 14.4.1976, coordenado pelo coronel Freddie Perdigão (1936-1996), militar torturador e criminoso que morreu impune. Em setembro de 2019, 30 anos depois do desaparecimento Stuart, a Justiça brasileira emitiu a certidão de óbito dele (e da sua mãe), com a informação de que foram mortos pela ditadura militar. E em julho de 2020 a família Angel, depois de um doloroso e longo processo em busca de reparação pela morte de Zuzu e de Stuart, recebe a notícia de que o Estado brasileiro finalmente assume a culpa pelo crime cometido e pagará R$ 480 mil (hoje cerca de 70 mil euros) de indenização às filhas da estilista: Hildegard e Ana Cristina. Todavia, entendo que não há dinheiro que pague as vidas deles.

A história fílmica prossegue e ouvimos Carol narrar em off poéticos e bastante afetivos trechos de cartas que trazem informações sobre a memória familiar e as lutas da sua avó Iramaya, enquanto camadas de tempos e imagens mesclam-se: imagens filmadas, imagens de arquivo coletivas e pessoais, notícias de jornal, fotos raras, documentos da polícia política ditatorial ou privados, imagens em preto em branco e em cores, dando a ver que o filme é composto de intensa pesquisa histórica e política, para além dos afetos.

E numa das suas falas (se não percebi mal), Carol deixa entrever um certo remorso pela distância entre ela e o pai, sobre aquilo que por anos ficou guardado na caixa preta de memórias da família Benjamim, e que ao longo da vida César quase nada quis revelar. Há tempos pesados demais nas suas existências, tempos que nem mesmo o cinema pode abarcar, outros que foram impossíveis a Carol aceder e que talvez ficarão conservados na mente e no corpo de seu pai. 

Em fragmentos das últimas cartas de Iramaya a Mariane Eyre, cartas lidas em off por Carol, percebemos a solidão que se instalou na vida da avó da realizadora. Depois dela conseguir libertar César da prisão e do exílio, esta mulher que tomou a dor dos filhos como sua razão de existir, após cumprir seu ofício de mãe protetora e militante política, ela passa a viver praticamente só, cada filho seguiu o seu destino, a vida seguiu o seu curso. Como disse o músico Caetano Veloso, cada um sabe a dor e delícia de ser o que é. 

Já no final do filme há um trecho curtíssimo do depoimento de César Benjamim à Comissão da Verdade, momento em que ele relembra seus sentimentos da época da prisão e cita uma frase do poema Aniversário de Fernando Pessoa, momento que me tocou muito, frase que destaco a seguir em negrito. A propósito, o poeta português é citado por quase todas personagens do filme.

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus! O que só hoje sei que fui…
A que distância! (Nem o acho…)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes…
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio…
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal, com uma dualidade de eu para mim…
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui…
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, As tias velhas, os primos diferentes e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos…
Pára meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro.
Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!… O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!…

O poema e as memórias de César Benjamim, permitem apreender e confrontar o que ele viveu e sente, coisas que nem o tempo pode dissipar. 

E há alguma incógnita no filme que eu gostaria agora de comentar: senti falta de César falar sobre a relação entre Iramaya e ele, entre filho e mãe, nem nas cartas ele menciona a luta da sua mãe para libertá-lo do cárcere. Penso que se não fosse Iramaya, ele poderia ter tido outro destino. Outra questão que me deixou a refletir é porque a diretora não mencionou a relação e posição do seu avô – um oficial do exército com os colegas militares ditatoriais que torturam Cid e César Benjamim. O avô tinha alta patente na hierarquia militar, contudo parece ter interferido pouco para que os filhos fossem libertados da prisão. Por que terá ele “se calado” no processo da libertação de César das mãos dos militares? E deixado para Iramaya esta árdua tarefa. Que admirável e brava mulher! 

Quero ainda mencionar em “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil“, o roteiro escrito a 4 mãos – de Carol Benjamim e Rita Toledo, que juntamente com Leandra Leal (elas são sócias da Daza Filmes) produziram o filme; a produção executiva de Eliane Ferreira, Danielle Villanova e Maria Flor Brazil; a direção de Carol; a pesquisa cuidadosa feita por Patrícia Machado e a montagem acurada de Isabel Castro e Marília Moraes – afinal não é fácil costurar tantas camadas de imagens, tempo e memórias. No link a seguir, Carol fala do Laboratório de montagem. Porque destaco esta mulheres (aliás, louváveis), por que não é sempre que vemos tantas profissionais mulheres na equipe principal de um filme. No Brasil este movimento ainda é recente, embora fundamental para que reduza a participação masculina, ainda dominante no mundo do cinema, principalmente, em funções de destaque e visibilidade com estas.

O documentário foi viabilizado com recursos financeiros do edital Histórias que ficam (uma parceria público-privado fomentado via dedução de impostos pela Lei de Incentivo à Cultura), teve outros apoios via laboratórios/consultorias. Como mencionei antes, foi produzido pela Daza filmes e co-produzido pelo Canal Brasil (TV), VideoFilmes/ produtora e distribuidora de Walter e João Moreira Salles e pela Muiraquitã Filmes/ Eliane Ferreira. No Brasil diante da crise no audiovisual e da posição do atual governo declaradamente contrário a apoiar o setor, os filmes têm sido feitos cada vez mais com este tipo de arranjo e também em coprodução internacional e por vezes é necessário contar com recursos até da própria equipe. Talvez por isso ultimamente muitas pessoas, em especial mulheres, tenham optado pelo género documentário que além de ter custos de produção mais baixos que a ficção, oferece mais liberdade em filmes cuja relação do/da realizador/a com o tema do filme é mais íntima, cujos afetos pessoais contam muito, como é o caso de “Fico te devendo uma carta sobre o Brasil

Fico te devendo uma carta sobre o Brasiltem a duração de 88 min, filmado em digital, p&b/cor, 2019. 

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
estar-eu-sobrevivente-a-mim-mesmo-como-um-fosforo-frio"Fico te devendo uma carta coloca em discussão o sinistro passado político do Brasil