Deslembro (Unremember) foi lançado no Brasil na distinguida Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2018, percorreu e recebeu prémios em importantes festivais de cinema pelo país e pelo mundo. Em 2019 esteve por meses nas salas de cinema brasileiras, filme que permeia a memória política da terra brasilis, passado nefasto que, infelizmente, retorna na autoritária política do atual (DES) governo brasileiro.

Deslembro é a primeira longa-metragem de ficção da realizadora brasileira Flávia Castro, cujo título surge de um poema de 1934, do ilustre poeta português Fernando Pessoa, poema que ouvimos no filme na voz da protagonista Joana (Jeanne Boudier) e da personagem Ernesto (namorado dela, vivida por Antonio Carrara) cerca de 60min de duração fílmica e outra vez no final.

Deslembro incertamente. Meu passado
Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui,
Está confusamente deslembrado
E logo em mim enclausurado flui.
Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo.
Só há de meu o que me vê agora —
O campo verde, natural e mudo
Que um vento que não vejo vago aflora.
Sou tão parado em mim que nem o sinto.
Vejo, e onde [o] vale se ergue para a encosta
Vai meu olhar seguindo o meu instinto
Como quem olha a mesa que está posta.


Fernando Pessoa não é a única referência literária no filme, há outros dois livros que Joana carrega e lê em outras línguas que compõem a sua vida-degredo: L’éducation sentimental de G. Flaubert e Rayuela de Júlio Cortázar. O poema de Pessoa espelha, integra a psicologia e a intimidade de Joana, reflete o passado que ela deslembra incertamente.

Deslembro nasce a partir da primeira longa-metragem documental de Flávia, Diário de uma busca (2010) – filme no qual ela busca descobrir o motivo da morte do seu pai, o militante político de esquerda Celso Afonso Gay de Castro, morto em circunstâncias suspeitas em 1984 no Brasil, no fim da ditadura militar brasileira e início da abertura político-democrática. Segundo a realizadora, Deslembro surge da vontade e necessidade de suprir a ausência de divulgação da história política do Brasil.

Mesclando memória pessoal e coletiva, a cineasta constrói a narrativa da vida de Joana, uma adolescente que vivia em Paris exilada com sua família quando a Lei de Amnistia é decretada no Brasil em 1979, Lei que lhes permitira retornar ao Brasil, ao Rio de Janeiro.

Contra a sua vontade, a adolescente volta a viver no país onde nascera e que ainda criança deixara, um lugar do qual pouco se lembra. No Rio de Janeiro, Joana acede a um passado em forma de imagens,  acede a trágicas informações com relação ao seu pai que desaparecera nos porões do DOPS (a polícia política ditatorial) por se opor e lutar contra o regime de exceção. 

Numa entrevista que fiz com a diretora (a ser publicada futuramente num livro composto de entrevistas com outras cineastas brasileiras), Flávia declara: “O filme mostra a adaptação de Joana no país que ela nasceu, mas não tem vínculos, e ao mesmo tempo sua busca em descobrir o que de fato aconteceu com seu pai e entender a memória que tem dele, que ela guarda do pai. Deslembro ao mesmo tempo em que se inscreve na história política recente do Brasil, é a história desta adolescente. E o filme fala também de exílio – algo que segue acontecendo no mundo”.

Com relação à questão do exílio, lembro que nos anos 1960/1970 a França foi um dos países europeus que mais acolheu brasileiros e latino-americanos que escapavam da ditadura militar, inclusive a própria Flávia Castro e a sua família.

Deslembro começa a ser pensado num Brasil de 2010, época democrática e de abundância de políticas públicas sociais dos Governos do Presidente Lula e da Presidenta Dilma. Filmado em 2017, finalizado e lançado em 2018 numa conjuntura política de extrema-direita, da tirania que se apodera da nação brasileira nas ações catastróficas e genocidas do atual presidEnte.

A realizadora parte de imagens e memórias intimistas de Joana entrecruzando com a memória coletiva sobre a ditadura no Brasil. Na cena inicial, como recusa a voltar a viver ‘num país que tortura e mata pessoas’, como Joana diz no filme, ela rasga o seu passaporte brasileiro, lança-o numa sanita e dá uma descarga (imagem a seguir). País que de facto extinguiu a vida do seu pai durante a ditadura. E esta é a única coisa que Joana tem certeza sobre o seu país de origem, um lugar do qual foi obrigada a deixar ainda criança.

Quando o filme estreia em Veneza e depois no Brasil em 2018, as marcas autoritárias da ditadura militar, infelizmente, retornam às ruas do Brasil estimuladas pelo governo. Nessa época já era possível ver jovens, adultos e idosos, com completo desconhecimento da memória política dos seus país, pedindo o retorno à ditadura. E o próprio presidEnte, vangloriando publicamente um dos maiores torturadores da ditadura e comemorando este nocivo período, que durou 21 anos de 1964 a 1985. Governo que defende a libertação de armas para a população, dentre outras atitudes despóticas que, lamentavelmente, seguem cada vez pior nos dias que correm.

O filme de Flávia é uma ficção, mas explicita o que foi a ditadura e o que dela restou, destaca a questão do exílio, e o desaparecimento de presos políticos fazendo referência ao pai da protagonista Joana. Expõe o silêncio e a dor que a adolescente, sua mãe e a avó carregaram por anos, e o insustentável peso deste tempo da nossa história. Deslembro é uma janela para quem não conhece esta memória histórica do Brasil, um passado que deve ser lembrado para que de algum modo seja possível evitar males maiores daqueles que já se instalaram no país.

Um filme que se forma com camadas de imagens múltiplas e criadoras, afetivas e políticas, pessoais e coletivas. Falado em três línguas, francês, português e espanhol, algo da experiência pessoal-familiar de Flávia que coincide com a família multicultural de Deslembro, composta por: a mãe – Ana (vivida por Sara Antunes), Luís (Julián Marras) pai de Leon (Hugo Abranches) e Paco (Gael e Arthur Raynaud) e padastro de Joana (Jeanne Boudier). Em casa a relação entre eles é politizada, aberta, livre, respeitosa e amável, quando viviam como exilados políticos na França e também quando retornam ao Brasil.

Sobre o núcleo familiar de Joana, faço destaque ao seu padastro, Luís era exilado político em Paris e antes, militante do Movimiento de Izquierda Revolucionaria chileno, e passa a viver clandestino no Brasil com outro nome. No Brasil, os filhos dele com Ana (e com outra mulher), reclamam da ausência de Luís e dela – que no Rio de Janeiro trabalha num escritório de executivos para sustentá-los. Em casa, as crianças viram-se sozinhas e como podem. A vida de Ana concentra-se no presente, como forma de se manter viva e escapar dos traumas do passado de militante política no Brasil, da perda do primeiro marido e de um tempo-fardo.

No Brasil, Joana por sua vez, agarra-se a simbólicos objetos afetivos para enfrentar o que passou, mas não se apagou, para viver o tempo presente. Ela vai acedendo às memórias do seu pai através da avó Lúcia (Eliane Giardini), que a recebe de braços abertos e com muito carinho, mesmo tendo ficado por anos separadas. O filme é, portanto, pleno de sensações, vivências e sentimentos de Joana, personagem que assim como a realizadora do filme, constrói um ‘diário de uma busca’, a busca pela razão do desaparecimento do pai.

A personagem Lúcia, mãe de Eduardo – interpretada pela veterana e excelente atriz Eliane Giardini, encena no filme a dor que carrega e a esperança de encontrar o filho Eduardo, mesmo depois de muitos anos, filho o qual ela se sequer tem atestado de óbito. Aos 56min de Deslembro (imagem a seguir), Lúcia, conversando com a neta sobre o passado do pai dela, folheia uma agenda (importante documento de arquivo onde constam nomes de desaparecidos políticos do tempo ditatorial – agenda que pertencia a Regina Von Der Weid – uma das fundadoras do Movimento Feminino pela Amnistia) e clama para ‘que o Estado reconheça o seu crime’, e espera um dia encontrar o paradeiro do filho.

Joana tem uma vaga e confusa memória dos tempos idos, afinal ela partiu do Brasil na infância, memória que aparece aos poucos no filme em forma de imagens sobrepostas, macro ou fora de foco. A adolescente carrega, de certa forma, sentimentos e sensações de Flávia, daquilo que ela viveu no exílio na França, Bélgica, Chile e Argentina, um desafiante passado familiar.

Rodado em planos-sequências longos e pacientes, embora tenham sofrido cortes na montagem. Planos que se juntam às cenas da memória de Joana – compostas de imagens de arquivo privadas/pessoais, filmadas e tratadas de outro modo. O filme é ambientado nos anos 70/80, mas não é um filme de época, e desenrola-se no Brasil pós Lei da Amnistia (1979). Apenas as cenas iniciais se passam em Paris e o restante no Rio de Janeiro, mas todas foram filmadas no Brasil. Nas cenas da chegada de Joana e a sua família no Rio de Janeiro há um encontro – festa de recepção e nela aparecem pessoas reais que foram militantes políticos durante a ditatura brasileira – na conversa entre eles alguns dizem serem exilados que haviam retornado ao Brasil.

O roteiro do filme parece sugerir certa visualidade criada a partir do mundo interno e externo de Joana, com pontos de vista dela. Composição que a câmera vai delicadamente registar e externalizar em imagens, respeitando o movimento e ritmo das personagens, aliás muito bem interpretadas por todos atores, em especial, o trio de mulheres: Sara Antunes, Eliane Giardini e Jeanne Boudier. Flávia interfere pouco na direção dos atores, eles parecem se autodirigir tamanha liberdade que tiveram para agir e se colocarem em cena, para viver as situações. Elenco que foi selecionado a partir da pesquisa feita por Jeanne Dosse, em escolas de francês do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, digo, os atores que representam os filhos da família. A direção de Flávia é leve. Deslembro é filmado como se fosse documentário e não ficção. Ela deve ter levado em conta a sua experiência nos seus trabalhos como assistente de direção de Richard Dindo, no filme Diário do Che na Bolívia (1994) e de Philippe Grandrieux no filme Jogo do bicho (1995), e ao imprimir o seu estilo coloca em suspensão as fronteiras entre o documentário e a ficção. A realizadora criou excelentes e delicados diálogos, às vezes com humor subtil. Elaborou uma montagem equilibrada juntamente com o francês François Gedigier (montador dos filmes de Philippe Garrel).

Um filme feito, na sua maioria, por mulheres talentosas, além da própria roteirista, realizadora e montadora, que soube conduzir bem toda a equipa e realizar um filme esplêndido. A produção foi compartilhada entre Flávia, Gisela Câmara e Walter Salles. E há outras mulheres na equipa como: Lara Carmo – 1a. assistente de realização, Jordana Berg na consultoria de montagem, Anaïs Castro na continuidade, Renata Russo no figurino, Valéria Ferro, Ana Paula Cardoso, Heloisa Passos, dentre outras. São raros os filmes brasileiros (ou não), cuja a maioria da equipa é feminina e em funções de visibilidade no cinema. 

A extraordinária e sentimental banda sonora do filme traz referências pessoais da realizadora: The Doors e Lou Reed, o samba de Noel Rosa e a musicalidade de Caetano Veloso, etc. Há sons/ruídos usados como modo de expressão das sensações da protagonista e como recurso de montagem. Sons de passos, do mar do Rio de Janeiro, da chuva, de objetos, da casa, etc., que estão ligados aos conflitos pessoais de Joana. Sonoridade que revela e atualiza a memória, criando camadas que atravessam os tempos presente e passado, sons que no filme nem sempre correspondem ao que as imagens mostram. Subtilezas sonoras captadas por Valéria Ferro, neste link num registo do canal Mulher no Cinema, ela pontua algumas questões dos bastidores do set de filmagem, vale a pena clicar e escutar. Tal como Flávia, muitas pessoas da equipa estão ligadas à área musical, o que parece ter favorecido o trabalho sonoro e a bela banda sonora do filme.

Saliento também a primorosa direção de fotografia de Heloisa Passos, que pode ser vista na força, equilíbrio visual e formal dos planos-sequências do filme, dê o play no link anterior para ouvi-la (retirado do canal Mulher no Cinema). E conforme declara Heloisa numa entrevista concedida à ABC sobre o seu trabalho em Deslembro, as referências estéticas para criar a fotografia foram: Diário (1973-1983) filme de David Perlov; Era uma vez na Anatolia (2011) do realizador turco Nuri Bilge Ceylan (cujo cinema eu particularmente admiro muitíssimo), De jueves a domingo (2012) de Dominga Sotomayor Castilho e Zabriskie Point (1970) de Michelangelo Antonioni. Ela relata ainda que Deslembro foi rodado com lentes mais suaves e luminosas usando a “Alexa Mini e Zeiss High Speed MKII, algumas cenas com a 32mm Zeiss standard Speed T2.1 e Arri/Zeiss macro 200mm. Tem uma cena com a câmera Sony a7sII e 50mm Zeiss High Speed MKII e outra com a Sony a7sII e Zeiss 100mm macro”.

Sobre a cuidadosa direção de arte criada por Ana Paula Cardoso (cuja fala sobre o filme podemos ouvir no link a seguir do canal Mulher no Cinema), no qual ela leva em conta a memória e os sentimentos de Joana, passado e presente. Uma arte aparentemente contraditória, um Rio de Janeiro frio, triste, invernal, europeu; enquanto a França com luminosidade colorida, alegre e quente. Cores frias e quentes que remetem às memórias íntimas, os sentimentos opostos que Joana carrega consigo de Paris e do Brasil, e que pouco vai mudando ao longo do filme.

No Brasil/Rio de Janeiro, depois do encontro com a desconhecida e carinhosa avó, as novas amizades, a boa música que integra as cenas fílmicas, a envolvente energia do povo brasileiro (daquele tempo) e a natureza exuberante do Rio, o mar e um amor, tudo isso desperta em Joana o desejo de vida e vai trazendo alegria para sua vida, um exemplo, na imagem a seguir.

E quase chegando ao fim da minha escrita, trago uma imagem marcante que aparece no final do filme, o momento de despedida de Luís, que vivendo clandestino no Brasil deixa o país e parte para a militância política em outro lugar da América latina. Uma das poucas imagens em que a família aparece reunida em Deslembro. Imagem que carrega sentimentos contrários de alegria e futura tristeza, já que não se sabe se Luís retornará ao seio familiar.

E faço mais um destaque: nos créditos do filme, Joana e o seu namorado/Ernesto cantam em off a memorável música Cajuína, de Caetano Veloso. Canção que eles cantam também em outros momentos do filme, feita em homenagem ao poeta brasileiro Torquato Neto (que se suicidara aos 28 anos em 1972). Pode ser ouvida aqui na voz do compositor Cajuína/CV.

Deixo-vos, por fim, o trailer de Deslembro e convido a todos para ver o filme (gentilmente e gratuitamente cedido pela realizadora e pela distribuidora) a ser exibido online sexta 16 de outubro, pelas 21h30 no Facebook do C7nema. O filme tem a duração de 1h37min.


Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
deslembro-incertamente-meu-passadoDeslembro é a primeira longa-metragem de ficção da realizadora brasileira Flávia Castro, cujo título surge de um poema de 1973, do ilustre poeta português Fernando Pessoa