O filme Mexeu com uma, mexeu com todas (2017), realizado por Sandra Werneck (1951-), foi lançado na 22ª edição do Festival de cinema documentário mais importante do Brasil, É tudo verdade, em 2017, e é a 19ª obra audiovisual da cineasta carioca.

Foto: Daniela Carasco

O título do filme “Mexeu com uma, mexeu com todas” faz referência a uma frase usada na manifestação do movimento feminista (imagem ao lado do protesto em São Paulo), que teve também a participação de homens não machistas, ocorrida em junho de 2016 em 11 capitais brasileiras (e em Portugal) e com enorme êxito. As manifestAções fortalecem o movimento feminista, imagens delas estão no filme de Sandra Werneck, para mostrar que as mulheres não aguentam mais este estado de violência nos seus corpos e não vão se calar frente aos abusos masculinos e ao silenciamento e cumplicidade da sociedade.

A escritora e feminista porto-alegrense radicada em São Paulo, Clara Averbuck, é uma das personagens do filme. Ela conta ter sido abusada sexualmente, violada aos 13 anos de idade por colegas numa festa na casa de um deles. E quando relatou o facto na Escola onde estudava, foi desacreditada. E mais recentemente e, outra vez, em agosto de 2017, ela relata numa publicação na internet que foi assediada sexualmente em São Paulo dentro do carro/por um motorista da Uber.

Clara Averbuck

Em “Não casemos num vagão“, texto publicado no jornal O tempo, em abril de 2014, Averbuck argumenta que “Esses assédios não têm nada a ver com desejo; tem a ver, sim, com poder e com uma cultura machista. Assédio e estupro não fazem parte de conduta sexual e isso deve ficar claro de uma vez por todas. SE NÃO HÁ CONSENTIMENTO, NÃO É SEXO, É ABUSO. Além do mais, devo frisar: os assediadores do transporte público não são doentes. Eles fazem parte dos homens que aprenderam, ao longo da sua vida, que podem tocar o corpo de uma mulher sem consentimento e que continuarão fazendo isso fora dos vagões, na rua, em todos os lugares, inclusive em lugares considerados seguros; 77% dos estupros são cometidos por conhecidos da vítima”. No filme, Clara menciona que muita gente acha, que a culpa pela violência sofrida por mulheres é da vítima, “que estava no lugar errado, na hora errada, com a roupa errada”.

A escritora, filósofa e professora norte-americana, ativista negra e feminista Angela Davis, vai nos lembrar que “para entender como a sociedade funciona, devemos entender o relacionamento entre homens e mulheres”. Uma sociedade que privilegia o machismo e o direito do homem em detrimento da liberdade e direito da mulher sobre o seu corpo, não é uma sociedade respeitosa dos direitos humanos.

O documentário de Sandra Werneck traz depoimentos de 7 mulheres, sendo 3 delas desconhecidas do público e 4 de classe média-alta – figuras públicas no Brasil. Sendo as primeiras, a cabeleireira Alessandra Silva Souza; a professora de escola pública Aline Matias Azevedo e a doméstica Delcimar dos Santos Nascimento. E as outras, a já citada escritora Clara Averbuck; a recifense e atleta-nadadora Joanna Maranhão; a mato-grossense-carioca atriz e modelo Luiza Brunet e a cearense bioquímica/farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes.

Aline Azevedo relata no filme que foi abusada por um estafeta, ela estava na rua e retornava para casa. Luiza Brunet conta que foi espancada, tendo três costelas partidas pelo seu último marido. Como é possível perceber, a violência contra as mulheres está nos lares, está nas ruas.

Maria da Penha (imagem abaixo), uma das personagens do filme, escreveu o livro “Sobrevivi, posso contar”, narrando sua experiência de agressão física sofrida pelo marido, que tentou matá-la dando-lhe um tiro enquanto dormia, deixando-a paraplégica. Ela lutou contra a violência feminina quase toda a sua vida e é uma ativista importante no país em defesa das mulheres.

Maria da Penha

Destaco que seu nome, deu nome à Lei Maria da Penha, lei que no Brasil criminaliza e tornou rigorosa a punição contra a cultura da violação feminina por homens. Em 2016, a Lei Maria da Penha (LEI Nº 11.340, 2006) foi considerada pela ONU uma das três melhores legislações do mundo no combate à violência contra a mulher, mas na prática nem tudo são flores. É uma Lei importante e que instituiu a criação de delegacias da mulher para atender mulheres vítimas de abusos e agressões; todavia e, infelizmente, as delegacias concentram-se praticamente nas capitais brasileiras e nelas as mulheres, são quase sempre, atendidas por homens, e são desencorajadas por eles, a denunciar os seus agressores, sendo às vezes até humilhadas. Eles não respeitam a situação de sofrimento e vulnerabilidade da vítima e violam os direitos humanos, quando não dão às mulheres o atendimento adequado. O que mostra que o Estado não está do nosso lado. Esta situação é também relatada pelas mulheres do filme de Sandra Werneck.

Delcimar Nascimento

Outra personagem do filme de Sandra Werneck é a doméstica Delcimar Nascimento, que por sua vez declara que o marido controlador e agressivo, cortou o seu pescoço com uma faca, entre outras agressões físicas e psicológicas que sofrera ao dizer-lhe que o iria deixar e que não aguentava mais a vida abusiva. Depois de anos de luta, ela livrou-se do marido. Mas, contra a sua vontade, ainda tem notícias do seu agressor através da filha. E relata não querer de modo algum voltar a viver com ele.

Alessandra Souza

A cabelereira Alessandra Souza é outra personagem do filme Mexeu com uma, mexeu com todas que relata situação de violência doméstica-familiar. Ela sofreu agressões do marido, com quem vivia uma relação abusiva há 14 anos. Quando ela finalmente toma coragem de se separar, ele atropela-a de carro a ela e à irmã (que a defendia), a qual acaba sendo levada para o hospital e perde a vida. Alessandra carrega um terrível e duplo trauma, e disse ter perdido a confiança nos homens. Violência doméstica é qualquer manifestação de abuso físico, psicológico ou emocional que um integrante de uma família sofre dentro do núcleo familiar. Este abuso, em geral, tem como objetivo a manutenção do poder do homem, sendo as mulheres as principais vítimas.

A última personagem do filme a mencionar é a nadadora profissional Joanna Maranhão (imagens abaixo). Ela relata que quando tinha 9 anos foi assediada sexualmente pelo seu treinador, o que veio prejudicar a sua carreira. Ela conta que de vítima tornou-se réu, diante da negação e denúncia do abusador pedófilo, que durante o processo que Joana moveu contra ele, afirmou à justiça que ela não tinha provas. Enquanto isso, ela carrega o trauma e dor.

Saliento que as mulheres de Mexeu com uma, mexeu com todas, tiveram a coragem de relatar dolorosas experiências, rompendo com a tendência de se esconderem por medo do abusador ou vergonha de desaprovação social. Há muitas mulheres que ainda escondem até de si mesmas, tentativas ou abusos sexuais sofridos na vida em família ou fora dela, carregando traumas e o peso deles na pele e na mente. Não deve ser nada fácil ter que conviver com isso. O filme critica o machismo e o conservadorismo da sociedade que se repetem de geração em geração no Brasil. E revela, que apesar de conquistas legais, a mulher ainda permanece em situação de vulnerabilidade social e sofre muita violência.

A montagem do filme alterna imagens do passado e do presente da vida das mulheres abordadas, com imagens de manifestações/protestos de mulheres contra violações femininas no Brasil. A longa-metragem Mexeu com uma, mexeu com todas condensa, portanto, os testemunhos de 7 mulheres vítimas e sobreviventes de violência e abuso sexual sofridos dentro e fora de casa. Abusos que no Brasil são naturalizados pela sociedade, que ainda intimida e culpabiliza a vítima, como forma de evitar denúncias e punições contra os agressores, muitos deles familiares. Com os diferentes testemunhos de mulheres de distintas camadas sociais, escolaridades e raça, o documentário representa uma pluralidade de vozes que reforçam que os abusos estão por toda a parte, atravessam a realidade de várias mulheres no tempo passado e presente do Brasil.

Além disso, vale evidenciar que o filme de Sandra Werneck tem o roteiro de Júlia de Abreu e a montagem de Maria Altberg. Três mulheres em funções relevantes no cinema, num filme de personagens apenas femininas e com a temática central da violência contra mulheres. Um encontro do cinema com o movimento feminista. É muito recente no Brasil o facto das mulheres estarem em posições por muitos anos ocupadas por homens. Isso se dá porque as mulheres estão reivindicando e ocupando estes espaços, antes dominados pelo mundo masculino. Este filme tem uma importância enorme por debater um assunto ainda pouco discutido no cinema, numa sociedade conservadora e machista, que muito ignora a realidade das mulheres com relação ao tema evidenciado. E possibilita um debate amplo para além da tela. Este tipo de filme, tão necessário, ainda é escasso nos dias que correm, demora chegar ao público e permaneceu pouco tempo nas salas de cinema do país, mesmo a realizadora Sandra Werneck tendo uma carreira longa e profícua. Ela que faz parte de uma geração das poucas mulheres que trabalham com frequência no cinema. Ela nunca parou de realizar obras audiovisuais, mesmo com todas as dificuldades de ser mulher e cineasta no Brasil. Sandra Werneck desde os anos 1970 faz filmes de ficção e documentários que discutem questões sociais prementes, alguns com relação as mulheres, como: Sonhos roubados (2009); Meninas (2005); Pena prisão (1984). E há dois outros filmes que eu gostaria de indicar Amores possíveis (2001) e Pequeno dicionário amoroso (1997), pelo facto de abordarem relacionamentos afetivos contemporâneos, colocando a mulher de forma independente. Sandra, além de realizadora é também produtora de seus filmes.

Nos últimos tempos, mais mulheres têm escrito e dirigido filmes, temos ocupado mais funções de destaque no cinema, e isso possibilita que conflitos vividos por mulheres se tornem temas dos filmes e sejam denunciados dentro e fora do cinema. Como é o caso de abusos profissionais e sexuais cometidos nos bastidores do mercado de cinema. Muitos deles impediam as mulheres de terem seus nomes em funções de visibilidade na ficha técnica de um filme.

Sobre os abusos profissionais e sexuais cometidos nos bastidores do mundo audiovisual, chamo atenção para um caso recente que envolveu um curador brasileiro de festivais internacionais de cinema, GB, denunciado como abusador sexual por 18 mulheres na seguinte matéria do The Intercept Brasil , ele se defende e nega as acusações, as mulheres tiveram os seus nomes, traumas e vidas expostos, sem contar outros constrangimentos que devem ter passado, além dos abusos que relatam terem sofridos. Alguns festivais de cinema como o de Roterdão posicionaram-se sobre o caso: “Gostaríamos de aproveitar esta oportunidade para enfatizar a importância do jornalismo de investigação na denúncia de má conduta sexual na indústria cinematográfica desde o #MeToo. Nosso setor só pode estar em dívida com este trabalho e, com a colaboração de toda a indústria, podemos e iremos procurar as mudanças necessárias para um ambiente mais seguro, saudável e transparente”, declaração completa aqui > IFFR statement. E neste link está o posicionamento neutro do IndieLisboa, que preferiu não mencionar nada quanto as mulheres.

Outro facto relacionado a este assunto e a frase-título do filme, “mexeu com uma, mexeu com todas”, que na época do seu lançamento, acabou se tornando um slogan e imagem estampada em camisetas (além da hashtag #chegadeassédio) em protestos de atrizes da TV Globo e outras mulheres famosas, contra o assédio cometido pelo veterano ator Global, José Mayer, denunciado pela figurinista da Globo Susllem Tonani. O ator admitiu o assédio, pediu desculpa e não foi punido legalmente. A Globo apenas suspendeu a participação temporária do ator nas suas produções. E embora, tenha apoiado a campanha pública das mulheres, ter pedido desculpa à figurinista e ter dito “repudiar qualquer forma de desrespeito, violência ou preconceito”; ao se retratar publicamente QUALIFICA o ator Mayer e AMENIZA o problema, dizendo: “O ator José Mayer, de enorme talento e com grandes serviços prestados à Globo, certamente terá oportunidade de expressar os seus sentimentos em relação ao triste episódio e esclarecer que atitudes pretende tomar”. A Globo desculpa-se tapando o sol com a peneira.

Como vemos os homens cometem abusos e crimes contra mulheres e seguem sendo protegidos. Ainda será preciso muita luta para que as mulheres não sejam violentadas, para que sejam respeitados os direitos sobre os nossos corpos e para que haja a devida punição dos homens-algozes. A luta feminista estava avançando, mas diante da opressão dos governos machistas e fascistas, principalmente, na América Latina, tudo fica mais árduo. É difícil saber como nós mulheres poderemos enfrentar o futuro, mas com certeza não podemos nos calar, a luta deve ir adiante para que as próximas gerações de mulheres não sofram tanta violência. E como disse a filósofa feminista francesa Simone de Beauvoir: “Por vezes a palavra representa um modo mais hábil de se calar do que o silêncio”.

Sobre o filme, numa entrevista, relata a realizadora Sandra Werneck: “Com essa experiência, aprendi muito sobre o tema e, em muitos momentos. Esse trabalho me emocionou por conta dos relatos das pessoas que participaram. Ele é importante por ajudar a dar coragem para quem precisa denunciar esses casos de violência e ainda tem medo“.

Esperamos que mais filmes sejam feitos, por uma equipe cuja maioria seja de mulheres. Filmes que optem por temas que historicamente oprimem e agridem o feminino. Por fim, saliento, que o cinema pode ser uma ferramenta de esclarecimento na sociedade, discutindo temas que podem evitar mais violência e mortes. Para além do documentário, dados públicos sobre a violência masculina contra as mulheres no Brasil podem ser consultados no link da FBSP.

P.S. Inicialmente o projeto do filme Mexeu com uma, mexeu com todas era chamado Feminino Singular. Conforme consta na página do filme no Facebook, para realizar o documentário foi feita uma pesquisa sobre mulheres vítimas de violência que quebraram o silêncio e compartilharam os abusos sofridos. O filme foi rodado em digital e em cores, tem 71 min de duração e é produzido pela Cineluz Produções – Produtora de Sandra Werneclk (e da sua filha Maya Werneck Da-Rin). O filme foi lançado no cinema e exibido na TV brasileira 2017 e lançado em DVD em 2018. E está disponível no Youtube.

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
nao-somos-apenas-uma-somos-todasCom os diferentes testemunhos de mulheres de distintas camadas sociais, escolaridades e raça, o documentário representa uma pluralidade de vozes que reforçam que os abusos estão por toda a parte, atravessam a realidade de várias mulheres no tempo passado e presente do Brasil.