Assisti ao filme Maré (Mangrove, 2018), de Amaranta César, no Festival Internacional de Curtas-metragens de Belo Horizonte-Brasil – ano em que o festival acolheu como temática central o “cinema negro”. Quando terminei de ver o filme, pensei: escrevo ou não sobre estas imagens? Durante o tempo da exibição fiquei perturbada com o apuro formal do filme, algo que para mim sempre foi atraente, dado o meu olhar flertar com cinematografias que primam por uma estética conceitual e formal. E não que eu pense que um cinema que deseja imprimir um gesto político, que deseja ser engajado e faz referências as minorias sociais, não possa ser formal e criar um agenciamento entre estética e política ou “pensar o estético a partir do político” – para usar palavras capturadas da própria realizadora. Então, coloquei-me a pensar o que uma mulher baiana, branca, de classe média, professora de cinema (académica) quis provocar quando decide realizar Maré, para falar de uma comunidade negra baiana ilhada do mundo.

E o pensamento se põe a pensar. Uma cena. Enquadrada em primeiro plano, uma mulher negra idosa acende um cachimbo. A câmera regista o retrato do seu rosto e rastros do tempo que ela carrega consigo.

Frame do filme

O filme escorre na tela e pouco a pouco me dou conta que esta senhora vive numa comunidade rural no interior do Brasil. Como sei que a diretora do filme trabalha na Universidade da cidade de Cachoeira no interior da Bahia, esta poderia ser já uma pista que ela filmou ao redor deste território que tem abrigado sua vida no tempo atual. Território, e a imagem desta senhora idosa e negra, deixam entrever que ela habita numa comunidade de remanescentes de escravos, povo quilombola do chamado recôncavo baiano. Saliento que os quilombolas no Brasil são marginalizados.

No centro desta imagem fílmica e também pelas bordas, há indícios claros de que o peso de uma herança cultural africana e atravessamentos históricos violentos de séculos de escravidão no Brasil, quer saltar da boca e dos corpos das mulheres-personagens de Maré, contudo a qualidade e perfeição estética dos planos bem compostos, parecem sobressair sobre as tensões que das imagens podem emergir para o espectador. E, ao meu ver, isso se coloca como certa barreira impedindo que as tensões venham à tona na tela. Se você não é um espectador atento pode ficar encantado pela concepção e harmonia visual do filme e pouco ver para além do que a imagem pode mostrar. E isso foi algo que desde o início de Maré me incomodou.

A temática do filme permeia lutas, travessias e resistências negras históricas, que muitas pessoas, infelizmente, ainda não se interessam ou se importam, ver na tela do cinema; e para estes, não está em jogo apreender o intolerável de uma situação ou condição dada, para eles os negros podem continuar à margem da sociedade, seja no cinema ou fora dele.

À um espectador desatento, se você perguntasse sobre o que é o filme, ele poderia dizer que é um filme doc-ficcional bonito, pictural, lento e silencioso sobre a vida de mulheres negras que habitam num isolado lugarejo do Brasil. Para mim, a estetização da realidade, nem sempre cabe em certo universo que carrega consigo um fardo pesado demais para o primor. O cenário onde tudo se passa, realidade carregada de inquietações, distancia da composição perfeita da imagem fílmica; e a falta de ação – a quase imobilidade das mulheres-personagens silenciosas, parece se espelhar no ritmo dos planos lentos.

Eu creio na ideia de que o cinema deve ser não uma imagem do mundo, mas o mundo em si, com toda a problemática que ele carrega. Depois de ver o filme fui para a casa e fiz um exercício de pensamento, fui em busca da abertura de um novo campo de possíveis para captar condições outras de percepção, para captar o exprimível de situações que podiam irromper a partir do filme. Foi preciso então, que eu forçasse o deslocamento do meu olhar da imagem formal, que tanto seduz, para adentrar no interior dos planos. E a cena do filme que de imediato me afetou e que me auxiliou a romper a barreira estética, é a desta mulher de meia idade (imagem a seguir), pobre e preta, que está pilando algo, talvez milho. Na referida cena ela dirige o olhar para a diretora (fora de campo), para a câmera e para o espectador.

Frame do filme

E ouvimos sua voz: “Dizem que a escravidão já acabou, quem disse que acabou? Está aí na cara, só não vê quem não quer”, e ela continua desabafando dizendo que insiste com os filhos para irem à escola, porque não deseja que eles sirvam aos brancos da cidade de Salvador. Esta mulher da segunda geração de mulheres quilombolas que vivem no e do manguezal, resiste e critica o passado escravocrata dos seus ancestrais. E os filhos desejam partir daquele lugar nenhum diante da falta de perspectivas para o futuro. Esta voz quer ser ouvida e nos permite acessar de imediato a violência do passado colonial que até hoje assombra e provoca nossa reação diante da sua dor, criando assim um incómodo entre a imagem-cinema e a imagem-realidade.

Não custa lembrar o óbvio. Salvador é uma grande cidade brasileira, a capital da Bahia, com um povo, em sua maioria, de origem africana e que por anos e anos foram escravos de europeus e brasileiros brancos. Um povo brutalmente explorado e maltratado, principalmente, na época que o Brasil era colónia de Portugal. Muitas pessoas negras, infelizmente, ainda continuam sendo agredidas e desrespeitadas, a escravidão de certo modo ainda persiste em lugares recônditos do país.

E é no olhar para esta mulher que vou buscar concentrar-me para extrair algo do pensamento, porque é este, para mim, o forte gesto sensível e político do filme. Na fala desta mulher, há um confronto e resistência explícita de um passado que ela não quer ver repetir para seus filhos. Pensando com a teórica feminista e ativista social Bell Hooks, o que esta mulher negra deseja é que o “seu olhar mude a realidade”, pelo menos a dos seus filhos, e ela quer ser vista não como objeto do filme, mas sujeito do cinema. No agenciamento maquínico da sua voz com a câmera de cinema, ela rompe a barreira estética criada pela diretora. E assim, consigo desvelar algo que jazia atrás da perfeição plástica da imagem que desde o início incomodou-me.

Quando as marcas do passado se atualizam no enfrentamento de um tempo que não se quer mais repetir como trágico e doloroso, o presente deve se tornar outro. Mesmo frágil, a mulher tenta tomar as rédeas do seu destino. É bom frisar que o campo de batalhas não se findou para os negros, em especial, no Brasil (ou para esta mulher), as batalhas prosseguem a todo momento testando a potência deles de agir, resistir e ser no tempo. Um tempo que dura e ao retornar certas marcas seculares pode ainda sangrar o corpo, o coração e os pés de muitos negros. Ainda bem, que os corpos e pés, que ainda devem lutar incessantes, pelo menos já estão livres das pesadas correntes de metal.

Extrair deste filme, da imagem-cinema o que está no interior delas, é tarefa para quem força o pensamento a pensar, para quem se joga num campo de forças, do universo feminino e negro, de mulheres remanescentes de quilombolas. Um universo violento que atravessa corpos, muitos ainda hoje segregados e que carregam um fardo árduo demais em suas costas, fardo que também é da sociedade – que é também nosso.

O que pode o cinema diante disso? O cinema pode dar a ver esta realidade, que muitos preferem apagar ou fingir que não mais existe. E, nós pensadores ou fabricantes de imagens em movimento, podemos no mínimo aproveitar este privilégio para escrever e colocar em discussão ou na tela do cinema tais situações do passado que ainda nos atormentam, para que no futuro não sejam apagadas ou tenhamos poucos registos imagéticos sobre os males do Brasil e da humanidade que insistem em repetir. Sim, diria Nietzsche, as coisas se repetem indefinidamente na eternidade. Mas se lutarmos, podem se repetir de modos diferentes, responderia Deleuze. Outros modos de violência e imagens perturbadoras existem no mundo, e a partir ou com elas, irão irromper também outros modos de resistência para além do cinema e deste filme.

O risco de se lançar em busca daquilo que não está dado, é desafiante e deve ser mais atrativo que a aparente calmaria de uma imagem-tempo que pode nos impedir de pensar e agir. No livro Espinosa: Filosofia prática, Deleuze vai nos lembrar que enquanto o pensamento for livre, nada estará comprometido, e enquanto deixar de ser, todas as opressões tornam-se igualmente possíveis, e, uma vez realizadas, qualquer ação se torna culpável, e toda a vida ameaçada.

Em Maré, nas situações vividas pelas mulheres marisqueiras (de comunidades negras de quilombos do isolado Vale do Iguape na Bahia), a realizadora tenta criar uma cartografia do mangue, e há na vida-mangue outra questão que me toca e quero aqui evidenciar: a falta de condições de vida digna destas mulheres abandonadas pelo poder público e deixadas à margem. Mulheres que têm no manguezal uma parca fonte de alimento e de renda: crustáceos e peixes que saciam sua fome e nutrem a sobrevivência.

Estas personagens se unem, num encontro que parece ter sido articulado pela diretora para que ela pudesse realizar o filme – para filmar parte da narrativa de vida destas mulheres que navegam e acolhem sua proposta, sem talvez muito poder interferir.

Há uma cena em que elas caminham pelas ruas de barro e cantam pela noite, num ritual, invocando forças e energia ancestrais, mas a força de agir destas mulheres, no filme e na vida está reduzida. Eis que elas se valem de um canto como resistência e pedido de socorro aos ancestrais. Uma memória atualizada no presente em forma de imagem, uma imagem dramática. Se por um lado vemos estas mulheres que invocam a força dos antepassados; por outro vemos também o marasmo do quotidiano delas expresso na tela, dados a ver na economia de seus gestos e afetos letárgicos diante da atmosfera incerta, na territorialização do espaço e tempo que abrigam suas vidas. Parece não haver saídas. A estagnação destas personagens-mulheres diante de uma vida confinada é intensificada pela composição dos planos dilatados e no ritmo extremamente paciente da câmera. Elas encenam seus próprios papeis. Um filme com uma montagem mínima/interna dos planos, com sons discretos, minimalistas e uso intenso do silêncio.

Há mais duas cenas do filme que eu gostaria de destacar. Numa delas uma senhora evoca Oxalá pedindo pena e misericórdia de sua vida e de seu povo. Oxalá é o orixá ligado à criação do mundo e da espécie humana. A mulher roga ao orixá, força para resistir o estado existencial em que se encontra, roga saída para sua situação e do seu povo que vive numa condição social limitada, ela roga auxílio diante da impossibilidade de mudanças reais.

Na talvez mais pictórica cena do filme (imagem a seguir), a cena dos barcos, um travelling horizontal acompanha as mulheres remando sobre as águas do rio que tranquilamente escorre. O tempo ali flui passivo, como o movimento da câmera. Três gerações de mulheres quilombolas se lançam no movimento de criar alianças entre elas e potencializar suas forças, diante do estado pantanoso em que se encontram, vivendo na encosta de um mangue (mistura das águas do rio e do mar), nos resquícios das marés (campo de forças do movimento de subida/fluxo e descida/refluxo das águas do mar). Do mangue o que emerge de bom é apenas o alimento do qual as mulheres se nutrem, neste habitat rude que lhes cabe e acolhe, distanciadas e abandonadas do mundo. O que podem esperar estas mulheres? Resta-lhes confiar na movência própria da vida ou naquilo que cabe nos seus destinos.

Frame do filme

Haverá saídas? … Há no filme entradas múltiplas certamente. Vemos na tela fílmica uma estética imagética criada pela realizadora para abordar uma temática social histórica sobre a negritude quilombola baiana. Com uma atenção atenta bergsoniana se consegue rasgar a imagem e entrar no seu interior para perceber o real quadro que compõe a vida das mulheres negras quilombolas, lamentavelmente, uma realidade violenta conservada há anos no atravessamento de seus corpos e existências e com pouca possibilidade de mudança.


Maré estreou na competição internacional do DOCLISBOA 2018, participou de outros festivais de cinema e venceu o prêmio de melhor curta nacional na 7ª edição do Olhar de Cinema – Curitiba Int’l Film Festival. Este é o primeiro filme roteirizado e dirigido por Amaranta César, que é professora de cinema e curadora. A ideia e o material para o filme surgem de uma oficina de audiovisual dada por Amaranta em comunidades do Vale do Iguape na Bahia envolvidas no projeto do filme. Este texto foi escrito inicialmente para o Festival de Curtas de Belo Horizonte-Minas Gerais-Brasil. O filme tem 23min e ainda não está disponível na internet.

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
mare-um-campo-de-forcasEu creio na ideia de que o cinema deve ser não uma imagem do mundo, mas o mundo em si, com toda a problemática que ele carrega. Fiz um exercício de pensamento, para captar o exprimível de situações que podiam irromper a partir do filme. Foi preciso, que eu forçasse o deslocamento do meu olhar da imagem formal, que tanto seduz, para adentrar no interior dos planos