Quarta-feira, 1 Maio

«The Souvenir» por André Gonçalves

Joanna Hogg transformou as suas memórias no filme que maior divisão entre audiência e público gerou em 2019.

Mesmo que saiba que o cinema não é arte que possa (ou deva) ser resumida em números, encontrei dados interessantes sobre este The Souvenir que me deixaram surpreso pré-visionamento, mas que os compreendi logo nos primeiros momentos em que deitei olhos ao filme.

No momento em que escrevo, esta longa-metragem aplaudida pela crítica internacional tem apenas 1/3 da audiência do Rotten Tomatoes a dar uma classificação favorável (34%), e até em sites mais especializados e confiáveis como letterboxd, o rating não sobe dos 3.5 em 5. Entretanto, a Sight and Sound, na sua sondagem anual de votantes, acaba de atribuir-lhe o título de Melhor Filme de 2019. No início do ano, o Festival de Sundance tinha-lhe atribuído o seu Grande Prémio do Júri. Onde está a verdade então? 

Bem, a verdade objetiva é que este filme de Joanna Hogg é efetivamente um clássico filme anti-audiência. Ao cronicar a ascenção da própria realizadora na década de 80 e o romance complicado que inicia com um homem mais velho, sem que haja uma história para além deste conjunto de vivências, The Souvenir acaba por se fechar nestas memórias de passagem de idade, sem um objetivo (e uma audiência) em específico senão a catarse pessoal da criadora, e contando com duas personagens centrais que não são propriamente feitas para serem exemplos de empatia, embora a “substituta” de Hogg (interpretada convincentemente por Honot Swinton Byrne) tenha aqui o peso de carregar a vertente dramática – e não seja propriamente culpa dela que a catarse não brote para fora. 

O ritmo é lento, glaciar até, pelo gelo que gera. Hogg apresenta por vezes um jogo meta de reflexões de espelhos, supostamente identitário – autobiográfico, em primeiro lugar; questionando como uma personagem escrita para ficção pode efetivamente ser real, mesmo que esta seja inspirada numa pessoa real; e por último, e talvez o que salte até mais à vista em termos narrativos, a crescente dúvida da personagem feminina sobre quem é esta nuvem de fumo que constitui para todos os efeitos o seu companheiro. O tom é tão opressivamente erudito que se torna quase cómico. É imaginar, a certo ponto, a dinâmica que Paul Thomas Anderson apresentou em Phantom Thread (Linha Fantasma), mas sem o suspense, sem o interesse implícito no contrato cineasta-espectador necessário.  

Sim, The Souvenir tem conhecimento cinematográfico para mostrar. Se isso é suficiente para ser recomendado, dependerá do que o espectador quer ver – se ficar preso duas horas num showreel técnico com um casal erudito de um sadomasoquismo que transforma quem vê num masoquista adicional, ou se qualquer semelhança a um filme que faça jus à semântica altamente emocional associada à palavra “souvenir“.  Nem a música mais despretendiosa dos Pretenders, colocada em modo random em 10 segundos, chega para abrir os cordões ao coração… 

Tal como não gosto de colocar números em críticas, não gosto muito de citar outros críticos no meu próprio texto – isto não é um trabalho académico, mas este filme de facto puxa pelo meu lado mais primitivo para combater o desinteresse com que me deixou : tenho assim que terminar citando Richard Brody no The New Yorker pelo remate inspiracional que não consegui ter: “No fim, The Souvenir é um filme sobre experiência que acaba ele próprio por não oferecer grande experiência“. 

André Gonçalves

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