Era de ouro do funk nas rádios de todo o Brasil, o ano de 1995 começou sob o embalo do programa “Big Mix RPC”, onde desaguavam as rimas das favelas, mas ampliou o seu escopo de hits sociológicos ao ouvir as canções de um conjunto vindo de Guarulhos, em São Paulo. Esse som alternativo ofereceu um outro (e mais irreverente) diapasão para a música do seu país ao apostar num estilo de paródia de crónica de costumes. Para a juventude brasileira dos anos 1990, saída do Impeachment do presidente Fernando Collor e assolada pela chegada de uma nova moeda (o Real), letras como “Money/ Que é good nóis no have/ Se nóis hevasse nóis num tava aqui playando/ Mas nóis precisa de worká” abriram uma perspetiva bem-humorada sobre os dilemas das lutas de classe. De forma bem similar, os versos “você, minha pitchula/ Me deixou legalzão/ Não me sintcho sozinho/Você é meu chuchuzinho” serviram de hino para uma juventude cheia das borbulhas da adolescência no rosto, sem uma moeda no bolso, expressar as suas inquietações amorosas. Esse fenómeno atendia pelo nome Mamonas Assassinas. A banda brilhou cerca um ano, explodindo em popularidade até ser interrompida por um desastre aéreo. Os seus integrantes morreram na queda de um avião: Dinho (vocal), Júlio Rasec (teclado, percussão e vocais), Bento Hinoto (guitarra), Samuel Reoli (baixo) e Sérgio Reoli (bateria). Uma mística nasceu naquele momento. A génese desse mito transformou-se em filme no apagar das luzes de 2023, a consagrar, nas primeiras respostas do público, o desempenho avassalador do ator Ruy Brissac, intérprete do vocalista Dinho.

Banda brasileira que fez do deboche a sua marca chega aos cinemas com o guião de Carlos Lombardi – Fotos: Edu Moraes

Assinado por Edson Spinello e produzido pela Total Entertainment (marca por trás do blockbuster “Se Eu Fosse Você”), a biopic chega às salas brasileiras num momento em que o Brasil encontra no filão das biografias musicais o caminho mais rentável. O maior sucesso de bilheteiras do Brasil de janeiro a dezembro de 2023 foi “Nosso Sonho”, em que Eduardo Albergaria narra os feitos da dupla Claudinho e Buchecha no funk melody. Foram cerca de 550 mil pagantes. Houve uma receita alta também para “Meu Nome É Gal” e “Mussum, o Filmis”, centrados na Música Popular Brasileira e no samba, respetivamente. Agora é a vez de uma narrativa ambientada no universo da música pop, porém mais interessada em narrar angústias de jovens em busca dos seus sonhos. O filme lembra mais o cinema de Judd Apatow (“O Virgem de 40 Anos”) e de John Hughes (“O Rei dos Gazeteiros”) do que “La Bamba” (1987), drama sobre a ascese e a morte do cantor Ritchie Valens.  É difícil não lembrar também do “Variações” (2019), de João Maia. A lembrança se dá pela ideia de que, na estrada pelo sucesso, formam-se “famílias um bocado disfuncionais”. É o caso dos Mamonas.

Coube a um rei do folhetim bem-humorado, Carlos Lombardi, autor de telenovelas de extremo sucesso como “Uga Uga” (2000) e “Kubanakan” (2003), escrever um guião capaz de injectar riso e leveza à trajetória da banda. Vemos as confusões afetivas e as batalhas profissionais de cada um deles, sobretudo os irmãos Reoli, Samuel (Adriano Tunes) e Sérgio (Rhener Freitas, que tem uma inspirada atuação). Dinho é o Sol do grupo, assim como Brissac é o astro rei.

Com longa experiência na TV, Spinello assume a realização explorando as inseguranças dos artistas a partir da criação de uma banda anterior, chamada Utopia, imortalizada num LP que fracassou nas vendas. Segue até a reinvenção como Mamonas, ao realizarem um investimento numa linha debochada de apresentação nos palcos. O deboche estendia-se para as letras, que não se rendiam à patrulha da correção política.

A apolínea fotografia de Pedro Iorio valoriza a direção de arte detalhista e amplifica o tónus frenético das sequências dos seus shows. É na montagem ligeira que a fita dribla excessos sazonais e assume um perfil tão inusitado quanto o dos Mamonas, acelerando o ritmo onde menos se espera e desacelerando quando os diálogos de Lombardi merecem os holofotes. Destaca-se no elenco a participação repleta de carisma de Pedro Pauleey como um político que dá força para Dinho e aos seus companheiros, assim como ganham realce ainda Jéssica Córes (no papel da jovem de Garulhos que encanta Sérgio Reoli) e Jarbas Homem de Mello, que desfila doçura no papel de pai de Dinho. É a doce atitude dele, de entender a sede de conquista do filho, que dimensiona a produção como um estudo sobre aceitação e perseverança.   

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
mamonas-assassinas-painel-dos-afetos-que-transcendem-a-irreverenciaCom longa experiência na TV, Spinello assume a realização explorando as inseguranças dos artistas a partir da criação de uma banda anterior, chamada Utopia. Segue até a reinvenção como Mamonas, ao realizarem um investimento numa linha debochada de apresentação nos palcos.