Aparentemente o filme “Debaixo das figueiras” (“Sous les figues“, 2022) conta a história de um grupo de pessoas de distintas gerações num dia de colheita de figos, contudo, à medida que as imagens escorrem no ecrã, vamos perceber que não envolve apenas o gesto de trabalho com a terra, mas muito mais que isso.

Na primeira imagem do filme, num plano aberto à beira da estrada no amanhecer, trabalhadores, mulheres e homens, novos e idosos, estão à espera de uma carrinha para os levar ao campo. Para os jovens apenas um trabalho de verão, entretanto para os mais velhos uma forma permanente de sobreviver através da colheita de figos, em longas jornadas laborais.

Um trabalho agrícola mal remunerado e em condições difíceis em todos os sentidos. Senhoras com cerca de 70 anos de idade ainda a trabalhar. Uma rapariga chega a desmaiar de fome enquanto trabalha, pois não lhe era permitido nem mesmo comer figos durante a colheita. O chefe controla e explora a todos, e assedia as estudantes. Um dia ele decide não pagar a um homem pelo seu dia de trabalho, supondo que o trabalhador lhe havia roubado umas caixas de figos, embora não pudesse provar. As mulheres idosas têm a face do cansaço acumulado e, numa breve pausa para o almoço, comentam umas com as outras sobre um acidente que houve com uma carrinha que transportava outros trabalhadores da cidade para a zona rural. Conforme disse a realizadora, acidentes como este acontecem com frequência neste tipo de trabalho na Tunísia, e os Media dão pouca importância, nada divulgam, pois estas são pessoas “invisíveis” socialmente e vivem em condições vulneráveis.

Este é um dos temas da primeira longa-metragem ficcional “Debaixo das figueiras” da jovem realizadora e produtora franco-tunisina Erige Sehiri (1982-).

Em 2018, ela realizou a sua primeira longa-metragem documental, “Railway Men“, com a qual foi premiada. Um filme que retrata a precária situação de trabalhadores ferroviários tunisinos da chamada La voie normale, a única linha férrea construída segundo as normas internacionais, e a mais negligenciada pelo Estado. No filme, gerações de trabalhadores ferroviários percebem a condição de risco do seu próprio trabalho, confrontados com poucas possibilidades, uma vez que o país não lhes oferece muitas opções em termos de emprego.

Em 2012, Sehiri filmou na Tunísia a sua primeira curta-metragem, “Le Facebook de mon père“, sobre o pai, um migrante que deixa a França e regressa a Kesra, a sua terra natal, de onde ele há muito tempo havia partido. Este era também o momento pós Revolução Tunisina (2011), a chamada Revolução do jasmim ou Revolução da dignidade, que teve início em dezembro 2010 na cidade de Sidi Bouzid, quando protestos contra a corrupção e a repressão policial acabaram por levar à deposição do Presidente da República, Zine el-Abidine Ben Ali. Ele controlava o país desde 1987. Amedrontado com os protestos, Ben Ali fugiu para a Arábia Sauditaa 14 de janeiro de 2011. A revolução que acabou por levar pai e filha à Tunísia. Na curta, Sehiri disse ter registado o modo como o pai usou a rede social Facebook para comunicar com as pessoas da sua terra natal, sobre a revolução e outras questões, incluindo o seu retorno.

O cinema de Erige Sehiri toca em questões sociais do seu país, e também exprime a beleza e a poesia das coisas simples, com um olhar atento e amoroso para as pessoas do seu país e terra natal, embora as condições de vida por lá ainda não sejam fáceis.

Outros temas discutidos na longa-metragem “Debaixo das figueiras”, são conflitos familiares, questões afetivas, sentimentos pessoais, ideais de amor tradicional das pessoas idosas versus amor libertário dos jovens, distintas gerações que confrontam valores morais e relações sociais do passado e do presente.

Digna de menção é a personagem feminista, com a qual me identifico, a adolescente Fidé (Fide Fdhili, imagem da capa deste texto). Ela confronta e exige que o chefe lhe pague corretamente pelo trabalho, questiona os seus direitos laborais e femininos nas conversas com os outros homens, colegas de trabalho. E é ainda mais audaciosa, pois enquanto trabalha, flerta com um jovem colega, sem se importar com o que os outros pensam dela. Fidé é uma mulher destemida, à frente do seu tempo numa sociedade árabe, machista, moralista e com forte influência religiosa na vida das mulheres.

O filme coloca em discussão questões laborais, femininas, sexistas e o patriarcado, todavia de forma espontânea e leve, sem ser panfletária. As mulheres são valorizadas e visíveis, têm face e nome. Em geral, as mulheres que trabalham na colheita de alimentos agrícolas nem sequer sabemos os seus nomes. A realizadora dá-lhes voz e a oportunidade para expressarem os seus pontos de vista.

Numa entrevista, Sehiri relata que se o pai não tivesse migrado para a França, talvez ela hoje fosse uma dessas jovens estudantes que embarcam numa carrinha para trabalhar no campo, para colher figos nas férias de verão na Tunísia. Ela disse se identificar com as personagens adolescentes mulheres, e buscou perceber e abordar o que há de si nelas e vice-versa, coisas que não necessariamente viveu, mas que faz parte de suas origens. Destaca também que escolheu o figo, pela simbologia de sua força e ao mesmo tempo pela sua fragilidade, e declara que isto está conectado com o feminino, com a juventude e a falta de oportunidades das mulheres de seu país para se projetarem profissionalmente e serem respeitadas em suas escolhas. Embora na Tunísia atual o governo não seja mais aquele que controlou o país por 24 anos.

Sehiri equilibra bem todos os temas envolvidos no filme e demonstra profundo amor pelo seu povo e pela sua terra. A escolha por atores não profissionais dá ainda mais realismo à narrativa, eles inclusivamente tiveram liberdade para improvisar, expressar os seus talentos e criar os diálogos e o roteiro junto com a cineasta, como ela menciona numa entrevista ao Festival de Cannes quando lançou o filme.

As imagens de “Debaixo das figueiras” foram feitas pela diretora de fotografia Frida Marzouk, desenhadas com luz natural valorizando a natureza, rodadas em locações naturais ao redor da vila natal do pai da realizadora, feitas ora com a câmara à mão, ora em planos fixos abertos à luz do dia. Os diálogos entre os jovens são bastante humorados. A banda sonora de Amine Bouhafa, que integra a narrativa fílmica, nos convida a partilhar de certa nostalgia, melancolia ou alguma alegria das personagens.

Eu gosto sempre de saber de onde vêm as mulheres sobre cujos filmes escrevo, e perceber como elas se tornaram cineastas. Erige Sehiri nasceu em Lyon (FR), numa família tunisina, e cresceu em Vénissieux-Minguettes, zona periférica de Lyon. O pai, eletricista, e a sua mãe, cozinheira de uma escola secundária. Sehiri frequentava assiduamente o único cinema do seu bairro, onde se aproximou da sétima arte. Com uma situação financeira pouco favorável decide estudar cinema nos Estados Unidos, fazendo qualquer trabalho para lá sobreviver. Ela não provém, portanto, do mundo de pessoas privilegiadas do cinema, e faz um cinema provocador e interessante, digno de ser visto.

“Debaixo das figueiras” (“Sous les figues“, 2022) tem 92 minutos, e foi exibido a primeira vez em Portugal no Festival de Cinema Feminino – Olhares do Mediterrâneo 2022 . Será distribuído nas salas de cinema portuguesas pela Nitrato Filmes no dia 14 de setembro de 2023.

Em 2022, teve a sua estreia mundial na Quinzena dos Realizadores em Cannes e foi nomeado para os seguintes festivais e prémios: prémio CineVision – Melhor filme de realizador emergente, prémio Gold Hugo New Directors Competition do Chicago International Film Festival, prémio Golden Puffin do Reykjavik International Film Festivalb (Islandia), prémio People’s Choice Award no Pingyao International Film Fest (China), prémio Golden Alexander Award Meet the Neighbors Competition at the Thessaloniki Film Festival, nomeado também aos prémios Roberto Rossellini Melhor filme e Melhor Realização, vencendo o segundo, e ao prémio Golden Bayard Melhor Film (Meilleur Film Francophone) no  Namur International Festival of French-Speaking Film (Bélgica). Em 2023, foi nomeado ao prémio FIPRESCI como Melhor Filme em Língua Estrangeira,  prémio Aurora Award do Festival Internacional de Cinema de Tromsø (Noruega), prémio Melhor Filme do Júri Jovens Adultos do Black Movie Film Festival; e foi vencedor da Competição Internacional de Novos Talentos Grande Prémio do Taipei Film Festival (China).

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
Jorge Pereira
debaixo-das-figueiras-da-cineasta-franco-tunisina-erige-sehiriO cinema de Erige Sehiri toca em questões sociais do seu país, e também exprime a beleza e a poesia das coisas simples, com um olhar atento e amoroso para as pessoas do seu país e terra natal.