Vou de Volta”, título de uma narrativa documental de Cláudio Assis, é uma expressão que no português brasileiro significa um “regresso simbólico”, ou seja, uma operação de retorno a um útero territorial, ainda que o território em questão seja o dos afetos. Mas é sempre um gesto de realce (ou de compreensão) do pertença. Uma triagem do cordão umbilical que une uma subjetividade a uma geografia que vetoriza de sentidos sua identidade, como é o Recife retratado por Kleber Mendonça Filho em “Retratos Fantasmas”.

É um filme engraçado… ou, como se diz no Brasil, é um filme “crocante”. Havia, há tempos, um anúncio publicitário de uma marca de biscoitos chamada Tostines que brincava com isso. “Tostines é crocante por que é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?”, dizia a publicidade. Pois, a longa-metragem lançada nas Séances Spéciales de Cannes tem a crocância do frescor (na sua abordagem para o legado arquitetónico dos templos de exibição de filmes no país do cineasta) e anda vendendo bem, frente à procura que vem tendo desde a Croisette. A láurea de Melhor Documentário no Festival de Lima, no Peru, ampliou o espectro de novidade na sua circulação por telas, que já tem passagens pelos festivais de Toronto e de Nova Iorque asseguradas. Mas é um trabalho de “Vou de Volta” do cineasta. A sua alma (profissional) está às vistas ali.  

Fachada de cinema no Brasil em foto de João Carlos Lacerda, recuperada pela longa -metragem de Kleber Mendonça Filho

Um dia, Kleber foi crítico de cinema. A partir da exibição de “Vinil Verde”, na Quinzena de Cineastas de Cannes, em 2005, esse jornalista pernambucano (e também diretor de narrativas em vídeo e da curta “A Menina do Algodão”) passou a gravitar por uma outra dimensão do écran. Essa nova “gravidade” desafia a Física, não só na sua condição de analista e resenhista de filmes, mas também pela sua expressão como um criador de imagens que repercutem pelo mundo.

David Lynch, Larisa Shepitko, Eduardo Coutinho e Michael Haneke sempre ganhavam o status de honra em suas análises, com direito a habituais menções à génese e à evolução da produção audiovisual do Recife, vide “Aitaré da Praia” (1925) e “A Filha do Advogado” (1926). Mas o artista mais recorrente na sua fala, sempre foi John Carpenter. Depois do fenómeno do mockumentary “Recife Frio” (2009), Kleber passou às longas-metragens, em 2012, com “O Som Ao Redor”, levando Carpenter consigo. Ecos do thriller “Assault on Precint 13” (1976) e do horror sci-fi “The Thing” (1982) reverberam pelo estudo que o realizador faz sobre a classe média (inclusive a dita “classe média alta”) da sua cidade, a capital de Pernambuco. Esse reverberar é notável a partir do momento em que ele se apropria da régua carpenteriana a fim de dimensionar uma marca de claustrofobia (e de atomização do padrão clássico de heroísmo) que o Brasil desconhecia nas suas telas. A mesma régua dá um tom tenso (bem) similar a “The Fog” (1980) a “Aquarius” (concorrente à Palma de Ouro de 2016), ao dar foco na estranheza (natural) da gentrificação. E explodem alusões a vários elementos da fauna de Carpenter em “Bacurau” (Prémio do Júri de 2019 na Croisette), faroeste nordestino (ou nordestern) codirigido por Juliano Dornelles. Ali, não apenas vemos um liceu que se chama Escola Municipal João Carpinteiro como há uma estufa que evoca “Escape From New York” (1981), da mesma forma como a horda de caçadores comandada por Udo Kier desperta lembranças dos vilões encarados por Snake Plissken.

Toda essa genealogia fica mais evidente quando a projeção de “Retratos Fantasmas”, a nova longa-metragem do realizador, engata no hangar do nosso olhar. Mais do que um “documentário-ensaio na primeira pessoa”, como definiu o professor universitário João Luiz Veira (da Universidade Federal Fluminense – UFF), é um processo de (auto)análise quase freudiano, libertando os “encostos” do seu inconsciente, e é uma autoficção. É um filme sobre o “eu, Kleber”, mas é, na mesma medida, um filme sobre a tal “classe média” que o gerou e sobre o lugar do cinema como veio de rutura com os garrotes ideológicos impostos A essa classe e POR essa classe.

As preposições aqui são via de mão dupla. Não por acaso, o ancestral mais próximo do filme seria “Opinião Pública” (1965), de Arnaldo Jabor, um filme que esquadrinha esse universo definido como “mediano” no seu poder de consumo. Foi Jabor quem entregou o troféu Kikito de Melhor Direção a Kleber, em 2012, no Festival de Gramado, quando “O Som Ao Redor” fez a sua primeira exibição pública no país, então chegado de Roterdão. Mas a presença de Jabor (como bússola) em qualquer um que faça um cinema crítico, com tom de crónica, em solo brasileiro, é enorme. Sobretudo aquele Jabor “de juventude”, tão preocupado em entender os sentimentos de uma parcela da sociedade da sua pátria que se entende pela conjugação na primeira pessoa (a do singular e do plural) do verbo “consumir”.

Nessa fricção com o passado (o seu cabedal consciente de referência e o mar de distensões simbólicas da condição sociopolítica da sua nação), Kleber promove uma imersão em sua própria formação como cinéfilo. A sua narrativa em “Retratos Fantasmas” parte de fotos antigas, que foram garimpadas nos mais variados acervos. Vemos imagens do Carnaval, imagens de filas de espera, imagens de fachadas de grandes salas de projeção. No grande écran, essas tais imagens são mescladas a arquivos e registos pessoais de vida do realizador. A mistura de recordações sentimentais, registos visuais diversos e reflexões sobre a memória compõem um grande mosaico sobre a recordação. Um puzzle vai sendo montado sobre o Brasil que o Brasil se tornou nas quase cinco décadas de relação com o cinema tratadas pelo filme, que contou com a sabedoria e o bom gosto de Karine Nobre e de Cleodon Pedro Coelho na pesquisa.

É um puzzle que nos revela o quanto o povo brasileiro se perdeu e – com a eleição de Lula – se achou. É um puzzle que revela um criador em processo… de se entender e tomar decisões sobre os grandes filmes que fará, a partir dos grandes filmes que já fez. É um puzzle no qual a edição de Matheus Farias referenda a sua força como um dos mais criativos montadores em atividade na América do Sul. É um puzzle com uma coda ficcional hilária, com referência a “Taxi Driver” (Palma de Ouro de 1976). Tudo funciona na plenitude ali.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
retratos-fantasmas-um-filme-crocante Mais do que um “documentário-ensaio na primeira pessoa”, é um processo de (auto)análise quase freudiano, libertando os “encostos” do seu inconsciente, e é uma autoficção.